O passado passa, mas para isso ele precisa deixar de ser presente. Para isso, o que aconteceu precisa encontrar um lugar confortável em nossa memória, caso contrário, os eventos se remoem, se espalham, bagunçam tudo como quem exige melhores acomodações. É como criar um tigre em uma pequena jaula de gravetos. A agitação da fera dentro de um espaço impróprio e de grades tão delicadas sempre será uma ameaça de fuga e ataque. Melhor seria devolver o grande felino a seu habitat natural. Se for mantê-lo preso, que haja a estrutura necessária. Que haja espaço suficiente, segurança suficiente e, principalmente, que esteja suficientemente disposto a mantê-lo satisfeito onde está, inclusive alimentando-o de maneira correta, ou achou ser possível manter uma lembrança sem visitá-la e alimentá-la esporadicamente?
Algumas pessoas
insistem em promover a celebração do esquecimento.
Aquele momento em que decidimos esquecer o que passou e eliminamos
todas as evidências daquele evento e criamos regras de como
superar tal evento. Na verdade, todo esforço empreendido nada
mais é que uma maneira de eternizar o drama. Equivale a quebrar todos os espelhos da casa de um cego. É tão ineficaz quanto ritualizar o desuso, o
descarte e a devolução de objetos icônicos, como
queimar os mimos de um ex-namorado acreditando que o fogo levará
junto todas as lembranças daquele romance frustrado. Tudo isso é combustível, força motora para tudo que
fizer dali para frente.
Algumas pessoas
promovem a negação como fuga. Repetem insistentemente
que certos eventos nunca aconteceram e, muitas vezes, até se
convencem disso. Nestes casos, costumam se vitimizar por não
compreenderem a razão de um sentimento de desconforto e culpa
que os atormentam. Assim como o aluno que não se esforçou
no ano letivo, quem não aprende com o passado estará
sujeito a repeti-lo.
Recentemente, fui
abordado pelo pai de uma mulher com quem me relacionei. O fim de nossa
relação foi bastante problemática e o pai, obviamente,
ficou do lado da filha, acreditando em tudo que ela dizia, por mais
absurdas que fossem suas alegações. Em várias
ocasiões, ele foi rude comigo. Me distratou e até me
desafiou, mas ele não fez nada disso por ser má pessoa, mas sim por um instinto paternal.
Quando me reconheceu,
ele puxou assunto e nos abraçamos. Ele disse o quanto
lamentava por tudo que aconteceu e pelo modo como me tratou.
Aproveitou para desabafar algumas de suas angústias e desgostos por parte
de sua família, inclusive sua filha. Ele esperou catorze anos pela oportunidade de me encontrar e falar todas essas coisas.
Nossa conversa foi
breve e nos despedimos, não sem antes um último abraço
e a garantia de que não havia qualquer rancor entre nós.
Retomar este assunto me
fez perceber com outros olhos a visita de
velhos fantasmas que já não são capazes de
assombrar, mas fazem questão de arrastar correntes que só
fazem ruídos em seus próprios ouvidos. Algumas
lembranças são bem-vindas pelo prazer que sua
recordação provoca. Outras, nem tão prazerosas,
cooperam na busca de momentos positivamente memoráveis.
Não se apaga ou
rasura o que fica na lembrança, mas que cada momento encontre
seu lugar de conforto no passado. Aquilo que nos queixamos, muitas
vezes, é justamente o que nos completa, pois ninguém é
feito exclusivamente daquilo que o agrada.
3 comentários:
Bela reflexão! Elaborar nossas questões do passado é necessário para seguir adiante sem amarras! Adoro ler seus textos! Bjs
Engraçado que algumas vezes eu me pego visitando o passado e procurando coisas mal-resolvidas. O passado vir na minha direção é interessante.
Saudações
Giovani
Grandes verdades...este trecho então é muito realidade...Aquilo que nos queixamos, muitas vezes, é justamente o que nos completa, pois ninguém é feito exclusivamente daquilo que o agrada. Gosto muito do que você escreve e sempre que tenho oportunidade leio. Beijos
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