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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Memórias Ortográficas do Cárcere

Pergunte a qualquer mestre de obras e ele confirmará que construir é sempre mais fácil que reformar. Às vezes penso que melhor seria destruir tudo para recomeçar do zero, já que o problema se deu lá no início, por conta de regras arcaicas, cheias de vícios e influências etimológicas das mais diversas. Na verdade pouco importa de quem é a culpa. No final, sempre somos os sacrificados.
Me chamo acento grave e meu nome faz jus ao meu estado de insegurança ortográfica. Alguns insistem erroneamente em me chamar de crase, mas não me ofendo, pois sempre estive por cima e o que vem de baixo não me atinge. Ao primeiro rumor de reforma, apareço como forte candidato à eliminação. Não à toa, pois sempre fui um incômodo para muitos. Quando menos esperam, apareço atrelado àquelas palavras que poucos considerariam suspeitas. Sou polêmico e visto como agitador, fui tachado de subversivo e perseguido. Tentei mobilizar meus companheiros para juntos formarmos uma resistência, mas havia muitos conflitos internos. O acento agudo e eu somos bem parecidos, mas temos inclinações diferentes. Eu sou de esquerda e ele de direita. Agudo gostava de fazer discursos políticos revolucionários motivadores, mas na hora de dar uma ideia ou de tomar uma atitude heroica, foi o primeiro a cair fora.
Meus perseguidores são conhecidos como gramáticos, mas eu prefiro chamá-los de neolinguistas. Hoje, tanto eu quanto os outros acentos gráficos somos monitorados neste campo de concentração. Auschwitz? Muito pior: Alfabetz.
Três estrangeiros especialistas em tortura foram recrutados e agora transitam entre nós sem cerimônias. Suponho que o chefe seja o K, pois costuma desfilar com uma capa. Também tem o W que gosta de rechear seus interrogatórios com muito what, who, when e where. O Y parece meio confuso, não deixa claro seu lugar como vogal ou consoante. Dizem que ele já estava ambientado ao Brasil e é presença garantida em passeatas gays, mas isso já é outra história.
Tanto K quanto Y fazem pose de durões, mas no fundo são dois vaselinas. Já livraram a cara do til, por cooperação, e o circunflexo que se entregou com toda parcimônia, apesar de ter perdido o voo. Quem pega pesado é o W com suas táticas de terror psicológico: “Well, well, well... Você deve se achar muito importante para o mundo, não é mesmo?” Respondo com convicção: “Talvez não para o mundo, mas à língua portuguesa, certamente!”
Aprendi que é preciso ser firme para sobreviver. Já me basta a mutilação que sofri nas últimas reformas, mas são lembranças que me trazem dor somente, por isso não vou entrar em detalhes. O que importa é que ainda estou vivo, mas não posso dizer que outros tiveram a mesma sorte. O trema se foi. Não sei se foi assassinato ou suicídio. Ele sempre foi um covarde. Com frequência se escondia e poucos davam falta. Tremia diante da possibilidade de ser esquecido, não aguentou a pressão e sofreu com as consequências.
O hífen sempre foi um vilão poderoso demais para ser eliminado. O máximo que conseguiram foi um acordo onde ele foi remanejado e novas regras limitaram suas aparições, sem diminuir seu poder de atuação. Ele deixou de ser o mandachuva, mas ainda é o arqui-inimigo.
Desta vez, eles não têm nada contra mim. Sairei desta mais forte e, em breve, todos saberão que sou mais que um mero grafismo. Todos reconhecerão que sou um fenômeno!
Resistir é preciso, mas sem perder a ternura jamais. Por isso, ofereço um brinde à liberdade com este copo d'água que, apesar de fresca, mantém o gosto rebuscado de apóstrofo.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Nunca


Não é de hoje que cogito a possibilidade de ser pai. Protelei muito esperando chegar o momento certo, mas o momento certo nunca chega quando decidimos pensar bem no assunto. Nunca nos achamos suficientemente preparados. Sempre há objetivos a serem alcançados para oferecer um conformo maior ao futuro herdeiro. Claro que nem tudo corre da maneira que planejamos. Certa feita, uma ex-namorada disse estar grávida de um filho meu e exigiu que eu desse o dinheiro para o aborto. Em desacordo com tal atitude, conversei com os pais dela (sem mencionar o interesse da filha em interromper a gestação) e garanti ser capaz de assumir essa responsabilidade. Estranhamente, ela alegou ter passado mal e, com isso, ter perdido a criança que hoje tenho sérias dúvidas se de fato existiu. Anos mais tarde, passei por um episódio no mínimo cômico quando, contrariando todos os métodos contraceptivos, uma namorada suspeitou estar grávida, baseada nos sintomas que ela vinha sentindo. Precisei relembrar a ela de sua condição infértil, levando em conta o período de nossa relação, sem contar com a precaução do uso de preservativos. A reação dela diante de uma gravidez indesejada, que só era possível em sua ansiosa mente, valeu como um aborto de minhas expectativas.
Em ambos os casos, a atitude das supostas mamães comprometeu muito a credibilidade em minhas companheiras, mas em nenhum momento a ideia de eu ser pai deixou de ser bem-vinda.
Longe de conflitos genitores, minha noiva e eu não costumamos tocar no assunto, pois priorizamos algumas metas pessoais antes de pensarmos com mais seriedade no assunto,mas sempre nos sensibilizamos quando vemos um casal desfilando com um bebê de colo.
Uma vez, acompanhei minha noiva em uma reunião de amigos. Todos comprometidos e com filhos. Apesar de bem recebido, optei sentar-me no sofá e me distrair com a TV enquanto todos conversavam, mesmo porque muitos dos assuntos tinham a ver com histórias que eu não fazia parte.
Justo quando eu estava entretido com o DVD do O Rappa, fui surpreendido por Maria Fernanda, filha do casal anfitrião. Muito comunicativa, ela me abordou com um repertório de brincadeiras difícil de resistir e acabei embarcando naquela onda. De repente, ela confessou ser uma vampira e, com o devido cuidado para não me ferir de verdade, mordeu meu braço. Me contorci simulando a dor de ser subjugado por tal criatura das trevas. Foi aí que resolvi dominar a situação e fiz uso de uma conhecida lenda sobre os vampiros:
_ Peraí! Se você é vampira e você me mordeu, então agora eu também sou um vampiro!
Me transfigurei e parti para o contra-ataque. Claro que não seria tão fácil. Ela tinha algumas cartas na manga. Quando finalmente a agarrei, pronto para cravar minhas presas, minha pequena vítima revida:
_ Nuuuuuuuncaaaaaaaaa!!!
Ela bradou apontando as palmas abertas das mãos em minha direção, reproduzindo o som daquilo que seriam raios poderosos.
Fiquei chocado. Eu não estava preparado para aquilo. Atordoado, ainda tentei escapar daquele golpe com o mínimo de dignidade:
_ Você dispara raio das mãos?! Vampiros não fazem isso!
_ É que eu sou uma vampira mutante!!
Aquilo foi demais para mim. Fui derrotado, humilhado, destruído. Por sorte, minha noiva recolheu o que sobrou de mim para me enturmar com seus amigos. Estaria eu realmente a salvo? O que mais esta vampira deixou em mim com sua mordida?
Quando nos despedimos, Maria Fernanda me presenteou com um forte abraço. No carro, fiquei pensando se eu realmente estaria preparado para ser pai. Como competir com tamanho poder imaginativo? Ainda abalado pelo impacto causado pelos raios, percebo que seria melhor descartar essa ideia de filhos. Não tinha me dado conta de como a paternidade pode ser algo tão assustador.
Foi quando paramos no semáforo vermelho que minha noiva tocou no assunto:
_ Reparei você brincando com a Maria Fernanda. Você leva muito jeito com crianças. Talvez seja a hora de começarmos a pensar em ter filhos, que acha?
Instintivamente, respondo em alto e bom som:
_ Nuuuuuuuncaaaaaaaaa!!!
Minha noiva encarou-me com seriedade e quis entender.
_ Nunca?!
Percebendo o quão insensível fui, tentei corrigir-me:
_ Nunca me senti tão preparado para isso, amor!
_ Tá, e por que suas mãos estão com as palmas abertas apontadas em minha direção?
_ É... Uhuuu!! Vamos ter um filho! Bate aqui!

terça-feira, 3 de julho de 2012

Única


Não gosto de mulher. Pronto, disse! Precisava pôr isso pra fora, já estava me fazendo mal.
Não estou dizendo com isso que gosto de homens ou que sou celibatário. Entendam que não tem nada a ver com orientação sexual, mesmo porquê orientar quer dizer levar ou ser levado a uma determinada direção. Sexo não nos guia em direção nenhuma. Sexo quer chegar, seja lá onde for. Sexo não conduz, é conduzido. Sexo não escolhe caminho, sexo se deixa atrair. Sexo se move a partir de um magnetismo que pode ser despertado tanto pelos atrativos mais óbvios como os mais incomuns. Afirmar uma direção exata como “eu gosto de mulher” é ser muito genérico. Quem assume sua preferência levando em conta tão somente o sexo como requisito está disposto a se relacionar com qualquer mulher, ainda que se comporte ou tenha a aparência de um homem, desde que a certidão de nascimento conste como feminino.
Ah, não é isso? Ser mulher tem a ver com aparência e comportamento? Então quem gosta de mulher também está disposto a se relacionar afetivamente com transgêneros, haja vista muitos transexuais serem dotados de uma feminilidade refinada e tão acentuada que deixam muita mulher no chinelo. Tudo bem que estes “dotes” podem causar um desconforto anatômico (principalmente se esse dote for maior que o nosso). Há intervenções cirúrgicas que eliminam essa questão, mas isso é suficiente para declarar-se mulher e nos deixar menos encucados?
Algumas pessoas agregam características às suas preferências: “Eu gosto é de mulher com peitão!”, ou “Mulher pra mim tem que ter bundão!”. Gorda, baixa, magra, alta, preta, amarela... Claro que há atributos que são levados em conta na hora de provocar nosso desejo, mas isto tudo nos limita. Por andar muito de bicicleta, sempre chamei a atenção por conta de minhas pernas, mas eu me sentiria péssimo se uma mulher me desejasse tão somente por esta razão. Eu até poderia fazer disso minha arma de sedução, mas sempre haverá algum maratonista ou jogador de futebol que representariam uma ameaça: “Desculpe, mas temos que terminar. Encontrei um cara que tem coxas mais torneadas que você.”
Às vezes, deixamos passar uma pessoa incrível em nossas vidas só porque ela não tem o formato da orelha que sempre sonhamos. Algumas vezes, cobramos de nós mesmos essas superficialidades. Achamos que nunca encontraremos alguém que nos ame enquanto não perdermos quinze quilos, comprarmos um carro do ano ou aprendermos a coreografia da música da moda. Se alguém se declara apaixonado por nós, chegamos a desacreditá-lo e a repudiá-lo, afinal, como alguém poderia gostar de alguém tão cheio de defeitos?
Antes de responder do que gostamos no outro, é preciso descobrir o que gostamos em nós. O que pretendemos manter conosco. A partir daí, nos policiaremos para que a pessoa que entre em nossa vida venha para acrescentar e promover a manutenção daquilo que nos faz bem, inclusive propondo as devidas transformações quando convenientes.
O que me conquista em alguém é a identificação e o que me instiga são os contrastes.
Definitivamente, não gosto de mulher. Mulher tem um monte por aí de tudo quanto é tipo. Eu gosto é da minha mulher e, esta sim, é única, pois, antes de ser minha, ela sabe ser dela mesma.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Passado Presente



O passado passa, mas para isso ele precisa deixar de ser presente. Para isso, o que aconteceu precisa encontrar um lugar confortável em nossa memória, caso contrário, os eventos se remoem, se espalham, bagunçam tudo como quem exige melhores acomodações. É como criar um tigre em uma pequena jaula de gravetos. A agitação da fera dentro de um espaço impróprio e de grades tão delicadas sempre será uma ameaça de fuga e ataque. Melhor seria devolver o grande felino a seu habitat natural. Se for mantê-lo preso, que haja a estrutura necessária. Que haja espaço suficiente, segurança suficiente e, principalmente, que esteja suficientemente disposto a mantê-lo satisfeito onde está, inclusive alimentando-o de maneira correta, ou achou ser possível manter uma lembrança sem visitá-la e alimentá-la esporadicamente?
Algumas pessoas insistem em promover a celebração do esquecimento. Aquele momento em que decidimos esquecer o que passou e eliminamos todas as evidências daquele evento e criamos regras de como superar tal evento. Na verdade, todo esforço empreendido nada mais é que uma maneira de eternizar o drama. Equivale a quebrar todos os espelhos da casa de um cego. É tão ineficaz quanto ritualizar o desuso, o descarte e a devolução de objetos icônicos, como queimar os mimos de um ex-namorado acreditando que o fogo levará junto todas as lembranças daquele romance frustrado. Tudo isso é combustível, força motora para tudo que fizer dali para frente.
Algumas pessoas promovem a negação como fuga. Repetem insistentemente que certos eventos nunca aconteceram e, muitas vezes, até se convencem disso. Nestes casos, costumam se vitimizar por não compreenderem a razão de um sentimento de desconforto e culpa que os atormentam. Assim como o aluno que não se esforçou no ano letivo, quem não aprende com o passado estará sujeito a repeti-lo.
Recentemente, fui abordado pelo pai de uma mulher com quem me relacionei. O fim de nossa relação foi bastante problemática e o pai, obviamente, ficou do lado da filha, acreditando em tudo que ela dizia, por mais absurdas que fossem suas alegações. Em várias ocasiões, ele foi rude comigo. Me distratou e até me desafiou, mas ele não fez nada disso por ser má pessoa, mas sim por um instinto paternal.
Quando me reconheceu, ele puxou assunto e nos abraçamos. Ele disse o quanto lamentava por tudo que aconteceu e pelo modo como me tratou. Aproveitou para desabafar algumas de suas angústias e desgostos por parte de sua família, inclusive sua filha. Ele esperou catorze anos pela oportunidade de me encontrar e falar todas essas coisas.
Nossa conversa foi breve e nos despedimos, não sem antes um último abraço e a garantia de que não havia qualquer rancor entre nós.
Retomar este assunto me fez perceber com outros olhos a visita de velhos fantasmas que já não são capazes de assombrar, mas fazem questão de arrastar correntes que só fazem ruídos em seus próprios ouvidos. Algumas lembranças são bem-vindas pelo prazer que sua recordação provoca. Outras, nem tão prazerosas, cooperam na busca de momentos positivamente memoráveis.
Não se apaga ou rasura o que fica na lembrança, mas que cada momento encontre seu lugar de conforto no passado. Aquilo que nos queixamos, muitas vezes, é justamente o que nos completa, pois ninguém é feito exclusivamente daquilo que o agrada.