Leitores

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O Lado do Coração

A paciência de Luzia já havia alcançado seu limite. Todos sabiam que ela não tinha vocação para exercer o magistério, muito menos lecionando para crianças do primário de uma escola pública próxima a uma comunidade carente. Todos os dias na hora do recreio ela se refugiava no estacionamento para fumar, vício que sempre detestou e jurava parar um dia. Em um desses intervalos, encontrou com a diretora Joana, que também acostumou a encarar o cigarro como um bote salva-vidas nessas horas. Muitas coisas incomodavam Luzia, mas uma em especial a fazia perder a cabeça.
_ É o danado do Lucas! Aquele peste vive me atazanando! Sempre interrompe a aula para explicar que o lado esquerdo é o lado que bate o coração. Fica apontando para os coleguinhas dizendo que fulano está sentado do lado direito da cicrana e que beltrano está do lado esquerdo de fulana. Parece até que a única coisa que ele aprendeu até hoje é a diferença de direito e esquerdo! Criança insuportável!
_ E que fez com ele? – Joana quis saber.
_ Eu o coloco de castigo e mando fazer silêncio, mas não adianta. No dia seguinte é a mesma coisa!
A diretora deu uma tragada profunda, soltou a fumaça de seus pulmões com satisfação e disse:
_ Pelo visto você não conhece a história de Lucas. Não faz idéia do porquê dele saber tão bem a diferença entre esquerdo e direito?
_ História?! Pra mim ele só quer chamar a atenção!
_ Lucas aprendeu com a mãe o que é direita e esquerda. Ela havia economizado para dar de presente ao filho um par de chuteiras. Para o menino não confundir os pés na hora de calçar, ela colocou um cadarço de cada cor. A chuteira de cadarço branco deveria ser colocada sempre no pé direito e a de cadarço azul sempre no pé esquerdo. Lucas perguntou a mãe como ele não esqueceria qual lado é o esquerdo e qual é o direito. Sua mãe colocou a mão dele sobre o peito e mostrou o lado que bate o coração. Ela disse que aquele é o lado esquerdo. O lado azul. Quando tivesse dúvidas era só colocar a mão no peito e sentir onde está guardado o coração.
_ Linda história, mas isso não justifica tumultuar minha aula.
_ Ai, Luzia... – jogando o cigarro no chão e pisando-o – Quando você vai perceber que nem tudo que acontece ao seu redor tem a ver diretamente com você? Lucas quer apenas mostrar que aprendeu bem a última lição que a mãe o ensinou.
_ Última lição?!
O alarme dispara alertando o fim do intervalo. Joana segue em direção ao pátio dizendo:
_ Sim. Última lição. A mãe de Lucas foi vítima de uma bala perdida. O tiro a acertou bem aqui – apontou para seu próprio peito na altura do coração – Bem aqui no lado azul. Acho que é bem difícil para uma criança esquecer, não acha?
_ Meu Deus... Eu... Eu não fazia ideia!
_ É estranho como nos identificamos com a tragédia, né? Parece que só compreendemos o outro quando conhecemos seus dramas. Acredite, Luzia, seus problemas não são maiores que os de muitas crianças desta escola. Já imaginou como seria difícil praticar nosso ofício se para cada criança que nos preocupássemos a ajudar tivéssemos que ouvir uma história triste?
_ Eu só queria que ele não atrapalhasse minhas aulas.
_ Como espera que ele seja cooperativo se para a única coisa na vida que ele tem certeza ele sempre acaba sendo punido?

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Pacto Demoníaco

“Tudo que disser poderá ser usado contra você.” Todos já ouvimos esta frase em filmes policiais. Dependendo de como anda seu casamento, esta frase pode sofrer algumas alterações: “Tudo que disser, fizer, pensar ou o oposto de qualquer uma dessas ações poderá ser e indiscutivelmente será usado contra você no tribunal ou em qualquer lugar ou circunstância.”
Acompanhem meu exemplo:
Estávamos minha mulher e eu no carro com minha sogra ao volante. Estávamos indo para casa de uns parentes dela. Chegando no portão da casa, minha sogra foi rendida por dois assaltantes armados exigindo a chave do carro. Por instinto, coloquei-me entre os criminosos e minha sogra. Ela e minha esposa fugiram aos gritos para dentro da casa quando abriram o portão. Um dos bandidos colocou o cano da arma em minha barriga e perguntou se o carro era meu. Disse que sim e ele pediu a chave. Como estávamos em uma vila de casas, processei os dados e soltei a seguinte afirmação: “Esta é uma Vila de policiais militares! Eles vão atirar primeiro e perguntar depois se ouvirem os gritos!” No mesmo instante, esconderam as armas, agradeceram e partiram procurando não chamar atenção. Não morava nenhum policial naquela vila. Minha sogra ainda tem o carro. Minha mulher ficou feliz por não ter que voltar para casa a pé.
Meu sogro tinha duas convicções na vida:
1-     Ele possui o segredo para manter uma família unida e feliz;
2-     Eu não era bom o suficiente para sua filha.
Não foi difícil para ele concluir que havia algo oculto em meu reflexo criativo para evitar o assalto. Armado com sua versão acusativa dos fatos, pôs-se a praguejar:
_ Eu sempre desconfiei que esse rapaz não era flor que se cheire! O que ele fez comprova minha teoria! Ele anda metido com coisa errada! Ele fez dois bandidos armados irem embora sem levarem nada! Estou convencido que ele tem algum trato com o diabo!
Quando descobri o que meu sogro andava espalhando, resolvi confessar-me com ele:
_ O senhor está certo. Eu fiz um pacto com o demônio.
_ Eu sabia! Eu sempre disse a minha filha que você não prestava!
_ Mas calma. Reconheço meu erro e pretendo corrigir tudo. Foi um momento de desespero. Senti-me pressionado por uma série de eventos que atormentavam minha vida e o demônio se fez presente com a proposta de mudar tudo se eu assinasse um contrato com ele. Quando dei por mim já estava dominado por satanás e seus diabólicos asseclas.
_ E como pretende consertar essa grande besteira que fez?
_ Vou enfrentar o demônio. Vou encará-lo e darei fim a este maldito pacto.
_ E o que está esperando? Faça a coisa certa ao menos uma vez e faça logo!
Não havia mais porquê perder tempo. Respirei fundo, caminhei até o quarto, fechei os olhos, concentrei-me e, quando reabri os olhos, vi o demônio. Olhei em seus olhos e disse em um só fôlego:
_ Mulher, quero o divórcio! Aproveita que seu pai está aí e pega uma carona para o inferno de onde nunca deveriam ter saído!
Claro que isso também foi usado contra mim, mas o pacto, enfim, foi desfeito.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Coisas que Não Esquecemos Nunca

Flávia tinha apenas treze anos quando chorou pela primeira vez por alguém. Ainda de uniforme, refugiou-se atrás do ginásio de sua escola onde sua frustração poderia transbordar em forma de lágrimas. Apesar dos olhos marejados, reconheceu Júlio, colega de classe, se aproximando com sua bicicleta.


_Está tudo bem? Por que está chorando?

_ Ah... É o Paulo.

_ Que tem o Paulo?

_ Sabe o que é? É que ele... Ele é um idiota!

Idiota não correspondia ao que de fato Flávia pensava sobre Paulo, mas pareceu-lhe mais apropriado. Confessar que o motivo de seu choro tem a ver com admiração e atração não correspondidas faria ela sim parecer idiota. Paulo é dois anos mais velho, bonito, esportista, divertido... O sonho de todas as meninas e Flávia não era exceção. Descobrir que Paulo mudaria de escola na semana que vem foi um golpe muito forte em suas fantasias.

_ Se ele é um idiota, então esquece ele! Já viu minha bicicleta nova?

_ E daí? É uma bicicleta como qualquer outra, oras.

_ Isso é o que você pensa. Eu a regulei toda! Troquei pneus, lubrifiquei a corrente, acertei a marcha... Quer dar uma volta?

_Não sei andar de bicicleta (olhando para o chão e limpando o nariz).

_ Eu te ensino!

Flávia topou o desafio e Júlio esteve o tempo todo do seu lado. Quando ela perdia o equilíbrio, ele a segurava. Quando ela ganhou confiança, ele a acompanhou correndo a pé. Aprender a pedalar nunca foi uma prioridade na vida de Flávia, mas sempre teve curiosidade. Hoje, comemora esta grande conquista.

Agradecida pela paciência e dedicação de seu colega, Flávia se despede.

_ Se quiser andar de novo é só falar comigo!

O ano letivo terminou. Flávia mudou de escola. Ela nunca procurou Júlio.



...



Dez anos se passaram. Flávia nunca foi fã de exercícios, mas a preocupação com a aparência a fez vencer a preguiça e, aproveitando o verão e o fato de hoje morar perto da orla, calçou seus tênis e pôs-se a caminhar em passos acelerados apreciando as ondas que esmurravam as rochas. Com poucos minutos, já sem fôlego, começou a considerar seriamente algum tipo de tratamento estético ou mesmo cirúrgico que a mantivesse atraente e lhe poupasse de tanto esforço. Quando o ar parecia queimar em seu peito ela decide parar justamente em frente a um outdoor onde havia uma publicidade de roupa íntima masculina. No mesmo instante ela reconheceu o modelo.

_ O cara sempre foi boa pinta – disse uma voz atrás dela – mas quem diria que Paulo se tornaria modelo?

Flávia espantou-se com o sujeito que a abordara montado em uma bicicleta.

_ Perdão, eu o conheço?

_ Sou eu, o Júlio! Fomos colegas de escola.

_ Nossa! É verdade! Quanto tempo! Você está ótimo!

_ Você está linda.

_ Obrigada.

_ Para um idiota, até que nosso amigo ali em cima não fica mal de cueca, não acha?

_ Paulo?! Ah... Ele é bonito sim, mas não é tudo isso. Nunca fez meu tipo.

_ Sei... Deixa eu te pagar uma água de coco?

_ Na verdade estou tentando correr um pouco. Ando muito ociosa e molenga.

_ Bom, então que tal dar uma volta na minha bicicleta enquanto eu bebo água de coco?

_ Acho que não sei mais pedalar. A primeira e última vez foi quando você me ensinou.

_ Esse é o tipo de coisa que não esquecemos nunca. Sobe aí.

Flávia sentiu um pouco de dificuldade, mas logo pegou o jeito. Acelerou pela ciclovia sentindo o vento e o cheiro do mar salgado. “Tente sem as mãos!”, gritou Júlio quando ela retornava. Tomando uma reta, resolveu arriscar. Soltou uma mão, depois a outra. Abriu os braços e sentiu-se um pássaro alçando seu primeiro voo.

Feliz por sua proeza bem executada, ela devolve a bicicleta agradecida. Júlio deixa um cartão com Flávia.

_ Este é meu telefone. Quando estiver com tempo para um papo, me liga.

O verão terminou. Flávia mudou de apartamento. Ela nunca procurou Júlio.



...



Uma década mais tarde, o tempo tornou-se artigo de luxo para Flávia. Sempre atarefada com seus compromissos profissionais, vive no limite de prazos a vencer e de clientes exigentes e apressados. Essa é sua rotina como sócia em uma agência de publicidade. Foi em meio à turbulência que ela se trancou em sua sala e pôs-se a checar a lista de possíveis candidatos a modelo para uma campanha de um perfume recém lançado no mercado. Seu coração quase saltou do peito quando se deparou com o currículo de Paulo. Não se tratava da melhor opção, mas, como pretexto para retomar o contato, ligou para ele e marcou uma entrevista. Combinaram um almoço. Flávia enrubesceu por Paulo lembrar-se dela. O clima foi ficando mais informal e Flávia confidenciou seus sentimentos por ele desde quando o conheceu. Com toda desenvoltura de quem conhece e articula bem seu poder de sedução, Paulo a convenceu de continuarem o papo em um local mais discreto. Foram parar em um quarto de motel onde transaram sem adendos ou notas de rodapé. Eram movimentos ensaiados como quem escova os dentes ou troca o canal da TV. Não que Paulo não soubesse o que fazer, mas Flávia estava com sua mente distante. Foram tantos anos de fantasia com este homem que qualquer desempenho extraordinário por parte dele ficaria aquém de suas expectativas. Enquanto ele investia com vigor entre as pernas de Flávia, ela fechou os olhos, abriu os braços e, por um breve momento, pôde sorrir.

Pediram a conta e, antes de se despedir, Paulo quis saber se ele estava aprovado para o trabalho, como se o que acabaram de fazer fosse a entrevista.

A campanha terminou. Flávia mudou de emprego. Ela nunca mais procurou Paulo.



...



Flávia levou mais dez anos para perceber finalmente que Paulo era o homem perfeito enquanto impossibilidade. Uma vez possível, Paulo valia tanto quanto qualquer outra experiência passageira e sem propósito. Não há razão para arrependimentos, queixas ou mágoas. O papel de menina chorona já não lhe cai bem. Refletia sobre seus quarenta e três anos de idade enquanto sorvia o café expresso na praça de alimentação do shopping que passou a frequentar desde que assumiu a chefia do departamento de marketing de uma multinacional com filial naquele bairro. Foi quando ela reconheceu Júlio na fila do cinema. Flávia notou o belo homem que ele havia se tornado. Lembrou de como ele se preocupou quando a viu chorando, de como ele foi zeloso correndo do seu lado caso ela caísse da bicicleta. Lembrou de como acreditou nela sugerindo que soltasse as mãos. Lembrou de como ele a fez sentir-se mais confiante e, apesar de não ser mais tão jovem nem praticar exercícios, aprendeu que não há nada mais atrativo em alguém que a confiança.

_ Oi, Júlio!

_ Flávia?! Nossa, quanto tempo! Você continua linda!

_ Você também não está nada mal! Desculpe não ter te ligado.

_ Deveria. Esperei que me ligasse.

_ Bom, será que posso me desculpar te pagando uma água de coco?

_ Acho que seria maravilhoso. Sempre sonhei com este dia, mas acho que você demorou um pouco a me fazer este convite.

Antes que Flávia pudesse insistir, uma menina se aproxima agarrando o braço de Júlio.

_ Pai, a sessão já vai começar!

_ Brenda, esta é Flávia, somos amigos desde os tempos de escola. Ajude sua mãe com a pipoca e o refrigerante que já estou comprando os ingressos.

_ Ta bom. Prazer, Flávia.

_ O prazer é meu, Brenda.

Brenda se afasta. Flávia se refaz da surpresa com um sorriso sincero.

_ Ela é linda, Júlio!

_ É sim. Vai fazer treze semana que vem.

_ Que sorte a dela. Você sempre foi muito prestativo com as meninas desta idade.

_ A sorte é minha por esbarrar com mulheres incríveis desde os tempos de escola.

Flávia sorri e uma lágrima escapa sorrateiramente de seu olho.

_ Foi um prazer reencontrá-lo, Júlio. Bom filme para vocês.

_ O prazer é meu, Flávia.

Se abraçaram fortemente, trocaram um beijo no rosto e antes de se distanciarem, Júlio disse no ouvido dela:

_ Espero que não se esqueça que te esperei.

_ Esse é o tipo de coisa que não esquecemos nunca.



Confiante e determinada, Flávia segue seu caminho atraindo os olhares masculinos ao seu redor. Ainda que sozinha, não há porquê ter medo de cair. Decide passar em uma loja de artigos esportivos antes de voltar para o trabalho. Já estava mais que na hora de Flávia arriscar-se em sua própria bicicleta.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Revelação

O objetivo do terrorismo é promover o terror. Há três meses ele fez seu primeiro contato. Lembro de pensar tratar-se de alguma brincadeira. Recebi no celular o torpedo que dizia: “Eu conheço seu passado”. Não havia como responder, pois a mensagem fora enviada de um número restrito. Toquei minha vida dentro da normalidade. Beijei minha esposa e filha antes de ir trabalhar. Dias depois, recebi um e-mail ameaçador: “O silêncio custa caro.” O que poderia ser isto? Algum tipo de vírus?


Uma semana depois, foi a vez do Orkut me surpreender com um depoimento: “O que seus amigos vão achar quando eu revelar seu maior segredo?” O perfil do usuário sequer possuía uma foto ou qualquer outro elemento que o identificasse. Fiz mentalmente uma lista de prováveis pessoas que conhecesse bem minha vida e que estariam dispostas a me prejudicar. Suspeitei de algumas ex-namoradas, mas não acho que nenhuma delas seria tão engenhosa para armar esse tipo de vingança. Colegas do tempo de escola que peguei no pé? Talvez. Admito que já aprontei bastante na juventude, mas não me lembro de nada que fosse digno de ser usado como chantagem contra mim.

Alguns dias se passaram e o Facebook indicava uma nova mensagem: “Sua família seria capaz de suportar a verdade?”

Respondi a provocação exigindo que se identificasse e dissesse de uma vez por todas o que queria de mim. Só fui respondido no final daquela semana quando entrei no MSN e um tal “O Vigia” surgiu online. “Você não sabe quem sou" – dizia ele – "mas eu o conheço muito bem. Não espero nada de você, apenas desejo que todos saibam do que foi capaz.” Tentei fazer algum acordo. Ofereci o dinheiro que eu guardava no banco para comprar um barquinho, mas ele demonstrou desinteresse em qualquer propina. “Só o que me interessa é desmascará-lo. Não há nada que você possa me oferecer que me faça desistir de minha missão.” Dizendo isto, desconectou-se.

Contratei um detetive particular com experiência em crimes virtuais. Ele tentou rastrear a origem das mensagens, mas todas as suas investidas só nos levaram a um labirinto cada vez mais complexo e insolúvel.

As ameaças ainda se espalharam por todos os sites de relacionamento que eu fazia parte (alguns eu nem lembrava que possuía conta). Foi no Badoo que ele deixou seu último recado: “À meia-noite deste domingo abrirei a caixa de Pandora. Todos saberão o que tentou esconder por tantos anos. Aguarde.”

Ele estava obstinado. Lutei da maneira que me era possível, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Minha esposa, minha filha, meus colegas de trabalho, todos perceberam que algo acontecia comigo. Tenso, já não conseguia dormir ou comer.

Finalmente, chegou o dia da revelação. Temendo a reação de todos, vim parar neste quarto de hotel de quinta categoria com meu laptop. São 23:52h. Em oito minutos ele divulgará em todas as redes sociais o fantasma que sequer desconfiava de sua existência e hoje me assombra.

...

23:55h.

Não há nada que eu possa fazer agora, senão esperar.

Ou será que há?

Num rompante, vasculhei meus contatos na agenda do meu celular. A primeira ligação que fiz foi para minha esposa que, preocupada, quis saber onde eu estava. “Apenas me ouça, amor. Meu tempo é muito curto. Eu te traí com sua melhor amiga e com sua irmã. Sinto muito, mas preciso desligar!” Em seguida liguei para minha mãe: “Lembra do nosso cachorro, o Paschoal? Eu disse que ele caiu da laje, mas fui eu quem o empurrou! Papai está em casa? Deixa eu falar com ele! Pai? Sabe o dinheiro que sumiu do seu cofre? Fui eu! E gastei com bebidas e prostitutas!”. O próximo seria meu patrão: “Chefe? Desculpe te acordar, mas preciso te dizer que todo dia cuspo em seu café e tenho maior tesão na sua mulher. Boa noite!”


Não daria tempo de ligar para todos. Tentei lembrar de tudo que mantive em segredo por anos e encaminhei como mensagem para todos os meus contatos na Internet. Confessei minhas mais íntimas experiências citando o nome de todos os envolvidos. Já que serei desmascarado, farei isso eu mesmo. Não deixarei nenhum segredo para ser revelado por este maldito terrorista ou por qualquer outro. Sou um livro aberto agora. Sei que sofrerei as conseqüências de tudo que disse esta noite, mas que seja assim. Que o véu seja retirado com minhas próprias mãos.

Meia-noite.


O laptop permanece conectado com a página do site que mais freqüento. No topo da página, um aviso diz que há uma nova atualização. Com a mão trêmula, pressiono a tecla F5. A página demora poucos segundos para atualizar, o que me pareceu horas. Enfim, a página reabre. O terrorista publicou uma foto minha quando eu era adolescente fazendo biquinho e um coração estilizado com as mãos. Em baixo, lia-se a seguinte mensagem: “Este usuário já teve perfil no Flogão.”

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Intolerável

O recém-casado jacaré voltava para casa depois de um dia de muito trabalho no Pantanal. Assim que chegou, sua esposa anuncia o cardápio da noite.


_ Olá, querido! Hoje preparei para você minha especialidade: sapo ao molho madeira!

_ Nossa, amor... Bacana, mas lembra que eu te disse que eu não como sapo?

_ Ora, deixe disso! Todo jacaré que se preze come sapo!

_ Mas me dá uma tremenda má digestão! Fico todo me coçando sem falar nos gases!

_ Deixe de ser resmungão! Preparei com todo carinho! O segredo é não mastigar! Abra essa bocarra e engula inteiro.

Para evitar confusão, o senhor jacaré resolveu, a contragosto, aceitar a iguaria.

Toda satisfeita e convencida de estar agradando seu marido, a dona jacaré passou a preparar sapo todas as noites. Como bom esposo, o jacaré fazia este sacrifício sem reclamar, devorando seu jantar sem mastigar e sem fazer cara feia.

Com o tempo, o simples coaxar de uma reles perereca fazia o estômago do jacaré dar reviravoltas. Não dava para manter por mais tempo esta dieta anfíbia. À noite, quando sua mulher o servia com mais um sapo rechonchudo, o jacaré protestou:

_ Sinto muito mais não dá mais para mim!

_ Como assim? Achei que você já estivesse gostando!

_ Eu odeio! Não suporto mais sentir o cheiro de sapo! Me dá engulho!

_ Como você tem coragem de criticar assim a comida que faço para você? Você é um ingrato! Um grosso!

_ Agora quer que eu me sinta culpado por não tolerar sapo?

_ Você não tolera nada! Bem que minha mãe avisou! Não sabe apreciar as coisas boas que faço por você! Se quiser comer pode se virar por aí, pois eu é que não perco mais meu tempo te paparicando seu, seu... Seu crocodilo!!

Ela pegou pesado. Xingá-lo de intolerante é uma coisa, mas crocodilo é humilhação demais. A fim de não prolongar aquela discussão, o jacaré resolveu sair para espairecer e encontrar algo para jantar. Atraído por um belo pedaço de carne fresca, caiu em uma armadilha. Os caçadores o mataram e arrancaram seu couro para ser vendido a uma confecção especializada em carteiras, pastas e bolsas de viagem.

Pobre jacaré. Ele aprendeu da pior maneira que no casamento é assim: Ou você aprende a engolir sapo ou você acaba virando um “mala”.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

O Bom e Velho Clichê

Meu encanto pelo cinema já andava comprometido há tempos graças ao advento de uma nova tecnologia inserida nas salas de exibição: o celular. Apesar dos inúmeros avisos de que os aparelhos devem ser desligados durante a sessão, o público parece estar convencido de que ringtones podem ser perfeitamente diegéticos com a narrativa fílmica.
Em uma dessas lamentáveis situações, estávamos minha namorada e eu assistindo uma película hollywoodiana quando na tensa cena de perseguição começa a tocar “Rebolation” do grupo Parangolé. O cidadão há duas fileiras atrás de nós atende o celular explicando que não poderia falar agora, pois estava no cinema. Segundos depois o mesmo toque volta a fazer parte da trilha sonora do filme, desta vez por mais tempo, como se o rapaz se recusasse a atender. Por fim, atendeu e se colocou a discutir em alto e bom tom. Acompanhando o andamento daquela inconveniente conversa, deu pra sacar que era a mulher dele do outro lado da linha. Apesar dos retumbantes protestos por parte dos cinéfilos presentes, tal interrupção se deu mais quatro vezes ao longo do filme. A essa altura eu só pensava em comprar o DVD pirata para conseguir assistir o filme no conforto e silêncio do meu lar.
Já do lado de fora, decidimos comer uma pizza e lá estavam o rapaz do celular e a mulher que concluímos ser a esposa dele. A discussão continuou ali, desta vez frente a frente.
“Por que as pessoas se colocam num papel tão ridículo como este?”, perguntou minha companheira, indignada com a boçalidade daquele casal.
“Bom, - disse em resposta – acho que as pessoas complicam demais. Viver é um roteiro simples e repetitivo, basta respeitar certas regras. O que consideramos ridículo acaba caindo no senso comum.”
_ Como celular no cinema e briga de casal em público.
_ Ou ouvir “Rebolation”!
_ Hehehe! Espero nunca chegarmos a esse ponto.
_ O segredo da felicidade é o clichê.
_Como assim?
_ Este filme que acabamos de assistir, por exemplo. O roteiro é o mesmo de centenas de outros filmes! Conflito, perseguição, resgate... Todos os elementos da narrativa clássica e seus arquétipos. Há uma razão para o clichê ter se tornado clichê: Repita quantas vezes quiser, sempre funciona!
_ E o que isto tem a ver conosco?
_ Esse casal discutindo... Aposto que eles discutem sempre e sempre pelos mesmos motivos. Não chegam a lugar nenhum e apenas complicam ainda mais a relação. Para evitar isso, bastava encerrar a briga com um “ah, deixa disso e me dá um beijo!” ou “Eu só sei que eu estava morrendo de saudades de você...”
_ Que canalhice!
_ Canalhice não! É só o bom e velho clichê!
_ Não sei se concordo... Pra mim isso não resolve nada!
_ Mas se não vai resolver de todo modo, melhor encerrar a discussão de uma forma bem humorada e funcional! Já escolheu a pizza?
_ Prefiro que você escolha.
_ Tanto faz, você decide.
_ Nada disso! Você sabe que eu fico super indecisa com tantas opções! Você sempre me faz decidir no final!
_ Será que você não entende que eu faço isso por me importar com sua opinião?
_ Entendo muito bem! Quem parece não entender direito as coisas aqui é você!
_ Caramba! Do que você está falando?
_ Acho que você nunca vai entender...
_ Não estou realmente entendendo mais nada! Como começou essa discussão boba? Dá pra ser mais clara e me dizer o que eu não entendo?
_ Você nunca entenderá... O quanto te amo!
_ ...Hunf... (tento disfarçar o sorriso) Canastrona...
_ Eu aprendo rápido!
_ Quatro queijos.

domingo, 19 de junho de 2011

Agonia Coletiva

Eu daria minha vida para que você me amasse , ainda que por um minuto,mesmo que para isso minha alma fosse condenada à perpétua tortura dessa lembrança...
Remoendo a minha perda que me destrói um pouco a cada dia...
A agonia em simples gesto de aproximação,de um coração cada vez mais longe, me diz o que faço pra me afastar de onde não quero ficar...
Sinto seus olhos brilhando como um farol em meio à escuridão...
Mas como posso me mostrar se só quem me conhece é minha solidão.E na febre do meu silêncio deliro clamando teu nome...
Porém quem poderá me ouvir se meu clamor é mantido mudo pela sua autosuficiência...
Meu desejo é quase indecente, quase morno, quase quente , quase insolente.Por isso me calo aflito num grito silencioso e quase permanente...
Então sem forças me entrego ao cárcere da tua imagem e entre espasmos de loucura encontro minha lucidez silenciosa...
Como em um sonho me encontro caminhando em nuvens ,enquanto tu estás enfrentando tudo aquilo que não te convém,porém acordo e me vejo cercado por antigos fantasmas, vivendo uma vida que nunca dá certo...
Sombrio destino incerto, sou um inseto em vôo rasante que implora um instante de glória.Humanamente de sua ansia me alimento, me sacio , me alento , e de sua pouca atenção me contento...
Fujo desse ciclo para não me perder pois por onde olho vejo você.sinto minha alma sofrer como uma bruxa na inquisição, e a cada vez que me olho no espelho, menos me reconheço...
E ao ver tua imagem refletida em minha face, percebo que quanto mais me fasto mais próximo estou, e quanto mais me odeio, mais te amo.E assim tem sido nossa existência , perfeita como luz e sombra, que sabem muito bem o espaço a qual merecem .E respeitam a simetria da vida, pois sabem que se um não existisse o outro não teria sentido.
autores:(José Cleverlandes / Eduardo Pará / Luciano Santiago)

domingo, 22 de maio de 2011

Atrasado Não Adianta

Ainda não entendi a escolha desse nome, mas muitas coisas são complexas quando o assunto é Hugo Leonardo. Essa foi uma proposta sugerida e editada por mim e que meu amigo resolveu encarar. Assistam e divirtam-se (espero)!

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Palestra

Bom, desde o início eu sabia que seria impossível transmitir em apenas duas horas o universo de informação que havia para passar, mas, no geral, posso afirmar que a experiência foi compensadora. Estou contente com o resultado e ansioso por um novo convite. Destaque especial a todos os presentes que participaram com entusiasmo. Espero de coração que minhas palavras tenham somado algo positivo. Obrigado equipe Seven pela oportunidade.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Heroísmo e Justiça

A vida não é justa.
A morte muito menos.
Meu pai nunca soube o que é vida fácil. Desde criança trabalhou duro para levar comida para casa. Percorria quilômetros para buscar água. Aprendeu o ofício de ladrilheiro e dessa forma sustentou esposa e filhos. Sempre tive uma meta em minha vida: oferecer a meu pai uma vida mais confortável. Dar a ele o descanso que nunca se deu ao direito. Fiz o que pude, mas sempre fica aquela sensação de que eu poderia ter feito um pouco mais. Se for para levar em conta o merecimento de meu pai, meus esforços sempre ficariam aquém de seu mérito.
O descanso chegou até meu pai de maneira compulsória. O sono pesou em seus olhos e o levou forçosamente a um repouso profundo e irretornável.
Meu pai foi sepultado em um domingo de sol, sem direito a clichês cênicos, sem lirismos ou luxo. Tudo muito simples, exatamente como ele gostaria que fosse. Se houvesse justiça, a morte deste gigante não passaria despercebida aos olhos do mundo. Se houvesse justiça seu corpo seria transportado com honras de Estado em um ataúde de mármore carrara, mogno e ouro sobre um caminhão do Corpo de Bombeiros cercado por uma multidão cantando, aplaudindo e soltando pássaros. No céu, pequenos monomotores praticando acrobacias aéreas soltariam pétalas de rosas brancas. No estádio do Engenhão, o time do Botafogo e seus torcedores fariam um minuto de silêncio. Roberto Carlos dedicaria uma canção a seu fã. A presidente faria um pronunciamento lamentando tamanha perda. A morte de meu pai ganharia destaque nos próximos calendários para que jamais esquecêssemos do dia em que perdemos um exemplo de dignidade, caráter e hombridade.
Isso tudo se houvesse justiça.
Sem grandes eventos, meu pai se foi. Assim como optou em vida, ele partiu de maneira discreta. Sem alardes, sem espetáculos e sem caprichos. O que jaz enterrado não é mais ele. É apenas o invólucro inútil. Meu pai está em cada abraço que me consola, em cada aperto de mão que lamenta a despedida. Meu pai está nas histórias engraçadas que recordamos. Ele está nos atos que ficarão para sempre na memória de muitas pessoas agradecidas por tudo que ele fez sem esperar nada em troca. Meu pai está em mim e na responsabilidade que assumo de honrar seu nome.
Assim como todo herói, meu pai permaneceu anônimo, protegido por uma identidade secreta, de modo que seu desfecho se deu sem ruídos e sem inimigos.
Minhas palavras são tolices. Um desabafo de quem, assim como tantos, não consegue admitir a perda de seu ídolo. Puro egoísmo, pois é este o caminho que todos seguiremos e não nos cabe protestar por quem partirá primeiro.
Pai, nem a vida nem a morte são justas, mas seu descanso se dá com a certeza de dever cumprido. Um coração sereno que cumpriu sua função até o último pulsar e uma consciência tranqüila de quem partiu sem nada dever.
Feche os olhos e deixe o sono te levar. O raro e precioso sono dos justos.
Eu te amo, pai.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Uma Fortaleza Chamada José Elias Sobrinho



Imaginem uma muralha inabalável. Uma edificação sólida e intransponível. Uma fortaleza imune à rudeza dos temporais e da vida.
Este é meu pai.
Rachaduras se mantinham ocultas em sua armação, de modo que seu desgaste se deu lenta e silenciosamente.
Façamos de nossas preces a liga que acentará as pedras em seu devido lugar.
Leve o tempo que for necessário, pai. Não há pressa. Quando estiver de volta, o alicerce estará ainda mais seguro.

Tartaruga Cor-de-Rosa

Tartaruga cor-de-rosa criou-se no meu jardim
Quando não faço comida, ela quem faz para mim
Tartaruga cor-de-rosa, ela é uma beleza
Ela gosta muito de mim, gosta de fazer surpresa

Um dia cheguei em casa e a encontrei chorando
E antes que eu dissesse algo, ela já estava perguntando
"Onde foi que você andou? O que foi que aconteceu?
Eu ouvi por aí dizendo que você morreu!"

E eu fiquei muito contente e ela toda prosa
E é por isso que eu amo a tartaruga cor-de-rosa

(José Elias Sobrinho)


quinta-feira, 31 de março de 2011

Pedaços Soltos

Vinte minutos. Márcia não é de se atrasar. Eis uma coisa que não posso me queixar. Ela sempre foi pontual com seus compromissos. Na verdade não há nada que me desagrade nela que eu me lembre (fora aquela mania chata de me obrigar a assistir os filmes do Almodóvar que ela tanto gosta). Márcia foi uma esposa perfeita. Como a deixei escapar?
Desde da separação mantemos contato e nos tratamos de maneira civilizada. A cada quinze dias nos encontramos aqui na praça. Ela traz nosso filho para passar o final de semana comigo. Ela é uma excelente mãe.
Por que ela está atrasada? Cada minuto sentado aqui neste banco aproxima minha mente de lembranças que me enchem de culpa. Tudo bem, eu nunca fui santo. Já errei muitas vezes. Estive com outras mulheres quando casado. Da última vez que aprontei, cheguei em casa de madrugada alegando ter que ficar na firma até mais tarde quando na verdade eu estava com a Ingrid (ou teria sido a Rebeca?). De manhã, sentei à mesa e puxei assunto enquanto tomava café. Márcia respondia em monossílabos sem me olhar nos olhos. Peguei um pedaço do bolo de cenoura para disfarçar meu nervosismo.
_ Hmmm... Delícia! Ninguém faz um bolo de cenoura como você, amor!
_ Gostou desse?
_ Se gostei?! Nossa! Desta vez você se superou! Sem dúvidas é o melhor bolo de cenoura que você já fez!
_ Melhor que o que eu fazia para você no início do nosso namoro?
_ Infinitamente melhor! Você me surpreende a cada dia!
Fui para o trabalho e quando cheguei em casa ela não estava lá. Márcia se foi levando nosso filho e algumas roupas. Dias depois chegou o pedido de divórcio.
Sempre fui muito astuto e cuidadoso com meus “pulinhos de cerca”. Seja como for, nunca tive coragem de puxar assunto. Apenas aceitei os termos da separação sem questionar. O que de fato a motivou tomar essa decisão depois de doze anos de relacionamento?
Finalmente ela chegou. Nossa... Ela está mais linda que nunca.
_ Oi, Paulo. Desculpe o atraso. O trânsito esta hora é bem complicado.
_ Oi, papai!
_ Oi, garotão! Tudo bom? Espera só um pouquinho ali no balanço que eu preciso falar com sua mãe, ok?
Nosso filho prefere a gangorra e faz amizade rapidamente com outra criança.
_ Olha, Márcia... Já faz um ano que nos separamos. Desde então eu venho pensando sobre tudo que fiz de errado e não há nada mais fantasmagórico para uma mente culpada que não saber a razão de seus remorsos. Fugi da verdade por muito tempo, mas não suporto mais... Por que você foi embora?
_ Bom... Você me pegou de surpresa. Não penso mais nisso faz tempo. Mas, se precisa de uma reposta, eu diria que foi uma coleção de pequenas coisas que se tornaram enormes. Pequenos descuidos, desleixos, vacilos... Até que cheguei ao limite.
_ Certo... E qual foi a gota d’água?
_ Certa vez, quando éramos namorados, eu disse a você que tolerava qualquer coisa, menos traição.
_ Eu sabia! Sabia que era isso! Não faço ideia como você descobriu meus casos, mas eu sinto muito! Saiba que desde então estou sozinho! Não consigo me relacionar com mais ninguém! Me perdoe, mas saiba que foram apenas aventuras idiotas!
Márcia olhou para o chão e seu semblante ressurgiu com um sorriso delicado e um olhar de compreensão.
_ Vocês homens... Acham que tudo tem a ver com sexo! Sempre soube que você era um safado, mas agradeço por confirmar. Eu desconfiava de suas armações, mas preferia fingir que era coisa da minha cabeça. Há muitas outras formas de se trair alguém, Paulo. Mentir é uma delas. Desconfiança, intolerância e desrespeito. Ignorar as necessidades do outro, esquecer seus deveres, faltar com a cumplicidade, agir com desafeto,
_ Fui tão ruim assim?
_ Não foi, Paulo. Estes são só alguns exemplos de traição. Esqueça as outras mulheres. O muro que nos afastou foi a soma de vários pedaços soltos. Alguns desses pedaços também foram espalhados por mim. Eu só juntei os cacos e tomei uma decisão.
Apesar de confuso, concordo devolvendo um olhar de compreensão.
_ Agora preciso ir, Paulo. Tenho compromisso e, você sabe, detesto me atrasar.
_Compromisso?!
_ Não que seja da sua conta – disse ainda sorrindo – ,mas só porque não consegue se relacionar com ninguém, não quer dizer que eu não consiga. E olha... Se realmente quer saber qual foi a gota d’água... Foi o bolo de cenoura.
_ O bolo de cenoura?!
_ O bolo era de laranja. E nem fui eu que fiz. É da padaria do Tião. Você sempre elogiou meu bolo de cenoura, mas nem sequer notou diferença.
Márcia entra no carro e se despede mandando um beijo no ar para nosso filho.
_ Papai, aonde vamos?
_ Onde você quiser, filho... Mas antes preciso passar na locadora de vídeo... Acho que não dei a devida atenção aos filmes de Almodóvar. Depois vamos à padaria do seu Tião.
_ Padaria?!
_ Pois é... Me bateu uma vontade enorme de comer bolo de laranja.

sábado, 19 de março de 2011

Palestras (Workshop) dia 29/4/2011

"Cliver de Oliveira"?!
De onde esse povo tira essas ideias?
Seja como for, eis aí o convite. Clique na imagem para ampliá-la.
Atenção: As palestras do dia 22/4 serão realizadas no dia 29/4, devido ao feriado da semana santa.



sexta-feira, 18 de março de 2011

Como Montar uma Banda de Rock - Manual de Sobrevivência

Clique nas imagens para ampliá-las.




“Junte sete selos do seu jornal de bairro mais cinco reais e noventa e nove centavos e troque nos postos autorizados por um músico e seu respectivo instrumento! Complete sua coleção e arrase nos shows!!”

Bom seria se fosse algo simples assim. Como todo trabalho em equipe, montar uma banda requer talento para lidar com fatores humanos. Trabalhar com pessoas é sempre um desafio, ainda mais quando nos referimos a um projeto onde cada membro é um artista com suas peculiares interpretações sobre o universo musical.
Na minha opinião, há duas regras a serem observadas para que a proposta funcione: o vocalista canta para o público e os músicos tocam para o vocalista. Se isso estiver bem claro em sua cabeça, sua banda tem boas chances de dar certo, desde que você encontre outras pessoas igualmente adeptas desse pensamento.
Minha experiência no mundo da música me rendeu uma certa bagagem, de modo que me sinto na obrigação de alertar os desbravadores que almejam aventurar-se por essas veredas. Eis os arquétipos que vocês certamente enfrentarão em sua jornada:

Vocalista: Cartão de visita da banda. Todos o encaram como líder e ele faz questão de acreditar nisso. Acha que ninguém na banda leva o trabalho a sério, a não ser ele. Adora ter seu ego massageado e não admite ser menos que o centro das atenções. Sempre armado com discursos ensaiados como se fosse ser abordado a qualquer momento para uma entrevista. Tem o hábito de ensaiar poses na frente do espelho usando o controle remoto como microfone. Colecionador de roupas esquisitas. Se ele também é o letrista, se intitula o poeta incompreendido. Se ele toca algum instrumento (principalmente violão e/ou teclado) é só questão de tempo para ele jogar tudo pro alto para arriscar-se em uma carreira solo.

Guitarrista solo: O egocêntrico. Dedica-se a arrancar de seu instrumento o maior número possível de riffs, escalas pentatônicas, métodos gregos, dedilhados e outras firulas. Vive uma guerra não declarada com o vocalista disputando a atenção de todos. Colecionador de tablaturas e revistas especializadas em equipamentos. Possui uma pedaleira de cinco mil efeitos editáveis (mas só utiliza delay, distorção e phaser). Gasta mais com cordas, palhetas, cabos e outras tralhas para a guitarra que com a própria namorada. Se considera um símbolo máximo de virtuosidade. Possui uma conveniente deficiência auditiva, de modo que faz questão de tocar no volume máximo alegando que não está conseguindo ouvir direito seu instrumento. Sempre muito seguro de si, tem plena convicção que a banda não seria nada se não fosse por ele.

Guitarrista base: O despretensioso. Ganhou um violão de presente da madrinha e se reunia com a turma depois da aula para tocar canções da Legião Urbana e Engenheiros do Hawaí. Nunca pensou em tocar numa banda de modo que vive no limbo entre o acústico e o elétrico. Colecionador de revistas de cifras. Resolveu tocar guitarra por insistência dos amigos. Usa um pedal chorus que veio junto com a guitarra quando comprou de um músico de igreja evangélica. Estará presente em todos os ensaios, mas na verdade preferia estar em casa vendo televisão. Às vezes aumenta o volume de seu instrumento, o que provoca a ira do guitarrista solo. Outras vezes arrisca uma segunda voz (backing), o que acaba provocando as críticas do vocalista. Sempre tem um plano B, caso a banda não dê certo, por isso está sempre se envolvendo em outras coisas para nunca ser bom em nenhuma delas.

Baixista: Uma vez me disseram que “todo baixista é autista”... E são mesmo. Introspectivo, o baixista vive em um mundo só dele. Costuma rir sozinho durante o ensaio. Coleciona amigos imaginários. Se pudesse escolher um poder escolheria o da invisibilidade. Quase sempre passa despercebido no show, a não ser por alguns expectadores mais atentos que estranham “aquele cara tocando aquela guitarra engraçada”. Não tem opinião própria ou se tem não faz a menor questão de expressar.  De certo, é de fácil convívio, mas não espere nenhuma iniciativa. Sua atitude começa e termina em acompanhar as notas musicais fazendo marcação com a bateria. Seu lema é “Não sou contra nem a favor... Muito pelo contrário.”

Baterista: Sempre o primeiro a chegar nos ensaios, pois costumam acontecer em sua casa já que a bateria é um instrumento de difícil locomoção. Tem o hábito de acelerar a execução da música gradativamente enquanto a toca, fazendo com que uma balada romântica se converta em um hard core vigoroso. Se sente injustiçado por ter que se responsabilizar pelo andamento da música e ter que ficar escondido no fundo do palco atrás de suas parafernálias e dos outros músicos. Coleciona vídeo-aulas. Bota pra fora seus fantasmas pessoais através de suas baquetas, faz da música sua válvula de escape. Se quiser dar a ele uma notícia ruim, certifique-se de que há algo inanimado que ele possa espancar. Se compromete com a banda e demonstrará isso tocando, não espere ou exija mais que isso.

Tecladista: Esse sujeito ficava trancado no quarto estudando música desde criança. Alguém descobriu que ele toca e o convidou para entrar na banda. Agora ele tem amigos e incorpora com toda força a idéia de banda como família. Adora ensaiar, mas se sente frustrado, pois tudo que aprendeu sobre piano clássico e música erudita será abstraído e o limitarão a acompanhar a música com estribilhos simplistas e sustentações ultrapassadas. Um dia ele se sentirá sufocado por isso, mas não falará nada para não ofender os amigos. Nesse dia, ou ele tocará como Beethovem ou executará todos com uma metralhadora como Scarface.

Percussionista: Se acha uma espécie de Hermeto Paschoal. Um gênio da sonoridade que arranca melodia de qualquer objeto que emita som. Difícil embarcar em seus devaneios e está sempre experimentando novos ruídos que passarão despercebidos no show. Por falar em despercebido, por quê estou escrevendo sobre percussionista? Ele nem é da banda! Foi convidado para fazer uma pequena participação e agora vai a todo ensaio entulhando o estúdio com um monte de sucata.

Se você é capaz de conviver com personalidades fortes e excêntricas como essas (não esperem nada muito diferente), o desafio está apenas começando. Se sua banda for boa e se tiverem sorte receberão convites para tocar em vários eventos onde não receberão nenhum centavo (sorte porque em muitos casos vocês terão que pagar para tocar). Seu repertório será de noventa por cento de música cover e sempre compararão seu trabalho autoral com outras bandas conhecidas (algumas que você detesta).

No começo tudo pode ser muito divertido, mas, se não houver retorno, banda pode se tornar uma brincadeira muito cara e desgastante. A cada dia me convenço mais que talento e vocação não são fundamentais para alçar voo na carreira artística, portanto, não desanime. O caminho é esse mesmo. Não somos nós que escolhemos a música, é ela quem nos escolhe. O sucesso não é a regra, é a exceção.

Clique nas imagens para ampliá-las.


terça-feira, 15 de março de 2011

Uma Longa e Saudável Amizade

_ Ai, Jujuca... Você é a melhor amiga desse mundo inteirinho!!
_ Você pra mim é como uma irmã, Nininha! Seremos amigas pra sempre!!!

...

_ Meu pai vai me dar de presente de aniversário um Falcon, Beto!
_ Grande coisa! Sou mais o Ferrorama que meu padrinho me deu!
_ Os Changemans detonam geral! Não tem pra ninguém!
_ Nem a pau, Juvenal! O Comando Estelar Flashman é o que há!
_ Tenho certeza que o Hulk vence o Homem-Aranha!
_ Como você é teimoso, Juvenal! O Hulk esmagaria o Aranha como um inseto!
_ Vou pra casa jogar meu Master System.
_ Sou mais meu Nintendo...
_ Não sei como você agüenta ouvir Guns n’ Roses, Beto! Banda ridícula!
_ Também não sei qual graça você vê no Ultraje a Rigor! Haja mau gosto!
_ A Nininha te chamou pra festinha Americana dela? Eu vou com meu blusão novo da Company!
_ Não, mas a Jujuca me chamou! Vou estrear meu tênis da Redley pisando nesse seu pano de chão que você chama de blusão!
_ Quer apostar corrida com minha Caloi?
_ Fala sério, Juvenal! Minha Monark vai fazer você comer poeira!
_ Beto, Já reparou nos peitinhos da Nininha?
_ Sou mais a bunda da Jujuca.
_ Gostou do meu carro novo?
_ Tem coragem de chamar esse Kadett de carro novo? Prefiro minha XLX350...
_ Cala a boca e toma um copo!
_ Putz! Malte 90 me dá dor de cabeça! Prefiro Kaiser.
_ Esse seu Menguinho está uma piada, heim?
_ Olha quem fala! Tricolor de bosta!
_ Eu disse que você se casaria primeiro...
_ Vai pro inferno, Juvenal!
_ Sinceramente não sei o que a Nininha viu em você, Beto.
_ Eu também não sei onde a Jujuca estava com a cabeça pra casar com um otário como você.
_ Avisa a seu filho que se eu o pegar olhando pra minha filha de novo dou um tiro nele!
_ Então manda sua filha parar de andar por aí mostrando tudo com aquelas roupinhas indecentes!
_ Vinho tinto ou branco?
_ Nem um nem outro, Juvenal. Você só tem vinho seco e eu só bebo suave.
_ Já viu o novo filme do Quentin Tarantino?
_ Não entendo os filmes dele. Se for pra ver violência prefiro John Woo.
_ Terminei de ler o último livro do Justin Cronin.
_ Toda vez que começo a ler o do Dan Brown que você me emprestou eu pego no sono.
_ Essas lentes de contato me irritam os olhos.
_ Por isso que eu só uso óculos.
_ Por que você não assume seus cabelos brancos e para de pintar esses fiapos grisalhos?
_ Combinado. Mas só se você arrancar esse bigodão tosco da cara!
_ Esse remédio pra coluna não está resolvendo meu problema.
_ Seu problema é velhice, Juvenal... Pra esse mal ainda não inventaram remédio.
_ Esse seu neto é meio mariquinha, Beto! Ao invés de entrar na Internet pra ver mulher pelada, fica só nos jogos online!
_ Pior é o seu que tem até um blog!
_ Bom, vou entrar pois já passam das 18h e eu preciso dormir. Manda um abraço pra Nininha.
_ Boa noite, Juvenal. Manda um abraço pra Jujuca. Dia desses apareçam lá em casa pra jogarmos dominó.
_ Está com Alzheimer, Beto? Esqueceu que as duas não se falam desde aquela festinha americana quando éramos crianças?
_ Verdade... Sabe que nem lembro porque elas deixaram de se falar?
_ Aposto que nem elas...

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O jovem repórter procurou escolher bem as palavras. O entrevistado em questão não era qualquer um. Tratava-se de um músico, compositor, poeta, romancista e escultor de reconhecimento internacional famoso por não gostar de dar entrevistas ou de ser fotografado. Tal exceção só foi possível depois de meses de negociação e duas exigências: que o repórter fosse alguém novo no ramo (não queria repetir as mesmas respostas às mesmas perguntas de décadas atrás) e que a entrevista fosse feita em seu apartamento, uma cobertura em um condomínio de luxo da área nobre da cidade há poucos metros da praia.
Apesar do nervosismo, o jovem repórter conduziu bem as perguntas. A entrevista só foi interrompida quando a esposa do artista entrou com uma bandeja de chá gelado e biscoitos. Há anos que essa gentil mulher despertava a curiosidade do público. Sabia-se pouco sobre ela. A vida amorosa do artista sempre foi muito badalada. Já se relacionou com atrizes, modelos e outras celebridades. Tudo mudou depois do casamento. Levam uma vida discreta, confortável e sem exageros. Mas quem é ela? Como se conheceram? Como alguém tão cobiçado decidiu casar-se com uma mulher desconhecida? Teria ela sido uma de suas fãs? Como ela o conquistou? Apesar da inexperiência, o repórter sabia dos riscos de levar a conversa para o lado pessoal, mas era um assunto tentador demais para ser ignorado. Ele ganharia o respeito de seus colegas de profissão se conseguisse arrancar desta entrevista revelações sobre a vida íntima desse casal. Experimentando um dos biscoitos, ele percebeu o estratagema perfeito:
_ Hmmm... Está uma delícia! Sua mulher quem os fez?
_ Sim, ela gosta de cozinhar.
_ Sei que estamos falando de sua carreira, mas se importa de falar um pouco sobre seu casamento?
_ Que quer saber sobre meu casamento? – Erguendo a sobrancelha.
_ Bom... (engolindo uma saliva que deslizou com dificuldade por sua garganta seca) Nossos leitores ficariam felizes em saber mais sobre a mulher que conquistou seu coração. Muitas mulheres sonham em estar no lugar dela e nada se sabe sobre como tudo aconteceu. Pra começar, ela admira suas canções? Já leu um de seus livros? Ela o acompanha em suas apresentações? Já fez uma canção para ela?
O entrevistado deu um meio sorriso que poderia ser traduzido como um soluço ou impaciência, em seguida ordenou:
_ Desligue o gravador.
Como uma criança que se prepara para receber uma bronca, o repórter afundou-se na poltrona e clicou a tecla pause em seu gravador digital.
_ Se eu fizesse idéia de que seus leitores se interessam por fofoca eu teria pensado melhor sobre conceder esta entrevista. Você é casado, meu jovem?
_ Sou noivo.
_ E o que você procura ser para sua noiva?
_ Acho que tento ser bom para ela.
_ Minha esposa – disse recostando-se no sofá – se chama Rosa. Apesar do nome, sua flor favorita é o crisântemo. Sua cor predileta é amarela. Não fuma. Gosta de licor de menta, mas só depois do jantar. Costuma ler antes de dormir, admira Saramago, mas seu livro de cabeceira é Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez. Detesta novelas, mas gosta de assistir os últimos capítulos. Morre de medo de avião, mas pretende um dia voar de asa-delta. Sempre que se irrita a veia da testa sobressai e o olho esquerdo fica semi-cerrado. Sente cócegas nos pés e atrás do pescoço. Não gosta de ouvir música alta. Não sabe contar piadas e ri de si mesmo quando tenta. Seu passatempo é pintar porcelanas, no resto do dia se ocupa cuidando da casa, de mim e das despesas...
_ Perdão – o repórter o interrompe – Por que está me contando todas essas coisas?
_ Rosa não manifesta qualquer interesse por minhas canções, meus escritos ou qualquer outra coisa ligada à minha carreira. O que nos aproximou foi algo muito maior. Algo que vai além de meus dotes artísticos. Algo que não pode ser escrito, lido ou registrado senão por nós mesmos. Algo que podemos descrever como um desejo imenso de ser bom um para o outro. Por isso, peço que ligue novamente seu gravador e refaça sua pergunta da maneira correta.
O repórter pensou por um instante. Pensou em sua noiva e deu-se conta que nunca se preocupou em decorar a cor, o filme ou o livro que ela mais gostava. Refletiu brevemente e, como quem decifra uma charada, sorriu e reativou o gravador perguntando:
_ Como você se sente por estar casado com seu ídolo?

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Triplo B: O Novo Césio

Não tenho o hábito de escrever sobre o que desconheço. Procuro buscar alguma informação antes de escrever sobre o assunto. Certos temas necessitam de um estudo maior que outro, mas em certos casos (como este) o mínimo de conhecimento é o suficiente para expressarmos uma opinião. Sempre evitei escrever sobre um certo “show de realidade” de conteúdo banal, bizarro e bestial (Triplo B) pois sei que, fale bem ou fale mal, é uma forma de propagandear tal evento televisivo. Semelhante ao Césio 137, o Triplo B é um produto radioativo e igualmente nocivo. Por apenas alguns minutos fiquei exposto às microondas emitidas de meu televisor e percebi que não dava para ficar calado diante de tal ameaça.
Lembro que há alguns anos atrás as pessoas se incomodavam com o excesso de câmeras de vigilância em condomínios fechados. Os moradores se queixavam da falta de privacidade até dentro dos elevadores. As câmeras estão por toda parte. Nas empresas, nas ruas, lojas, em celulares... A vigilância faz parte de nossa rotina e hoje não somente é bem-vinda como tornou-se o objetivo máximo de uma sociedade voyer que sonha com fama e fortuna acima de qualquer coisa.
A proposta de um “zoológico humano” é até interessante, pois propõe uma idéia de estudo comportamental em condições de enclausuramento. O problema é que todo comportamento é manipulado para alcançar altos pontos no ibope. O programa sugere que o habitat natural de um ser humano seja uma mansão com piscina, academia, hidromassagem e todo conforto que o dinheiro possa comprar. As atividades se resumem em festas, preguiça e competições cujo único objetivo é atiçar a ganância. Se há o propósito de mostrar a natureza humana, certamente trata-se do pior lado de nossa natureza. Todo assunto gira em torno de fofocas, intrigas, inveja, futilidades, sexo, materialismo e mentiras. A impressão que dá é que todo discurso produtivo (se é que há algum) deve ser cortado na edição.
Quando levamos em conta a questão da índole, percebemos que os competidores mais populares são justamente aqueles que agem de maneira amoral. A sugestão explícita do programa é a mensagem de libertinagem, sexismo, desprendimento emocional e curtição desmedida e desregrada. Longe de ser preconceituoso, acho que há algo muito errado quando assuntos sérios e de cunho pessoal são tratados de maneira tão vulgar e irresponsável em horário nobre. Tanto faz a orientação sexual de cada um, mas quando isso é explorado como espetáculo circense, nosso conceito de intimidade e família fica seriamente comprometido.
O mais cruel é ter um jornalista renomado, um formador de opinião de alta credibilidade, além de talentoso poeta, se submeter ao papel de comandante desta “nave-mãe” e se referir aos famigerados tripulantes como “nossos heróis”. Esqueçamos bombeiros, médicos, policiais, ambientalistas e outros tantos que abraçam a luta em prol do bem comum colocando a vida alheia acima de seu próprio bem estar. Ser herói ganhou uma nova conotação. Heroísmo é exibir-se em trajes de banho, promover erotismo gratuito e disputar recompensas milionárias.
Até aqui não disse nada que todos já não saibam e, ainda assim, há quem defenda tal entretenimento. Admito que muitas vezes me diverti com situações que não me acrescentaram positivamente em nada (às vezes é bom não nos levarmos tão a sério), mas chegarmos ao ponto de aceitarmos tal distração como assunto principal (jornais, internet, programas de TV...) e meta de nossas vidas é imensamente ofensivo.
Em 1987, o Brasil comoveu-se com a tragédia que marcou milhares de pessoas que tiveram contato com um certo cilindro metálico em Goiânia. Hoje a contaminação ganha formatos mais atraentes. Somos milhares de vítimas voluntárias deste experimento que, diferente do Césio, não gera deformações físicas, mas deforma nosso conceito de moralidade, dignidade, honestidade, bom senso e valores.
Quem acompanha meus textos certamente sentirá falta de um tom mais cômico neste artigo, mas esse assunto não cabe outra abordagem senão a da indignação. Uma coisa é rir de um sujeito que tropeça na lama (não que isso tenha graça), outra coisa é rir de nós mesmos quando estamos até o pescoço na areia movediça.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Cara

Deixa ver... Hmm... Pão integral, leite desnatado, alface hidropônica, rúcula, ricota, biscoito água e sal, suco sem açúcar... Acho que não esqueci nada. Desde o dia em que o médico disse que eu precisava emagrecer minha namorada me obriga a comprar essas coisas. Pior de tudo é pagar tão caro para comprar uns troços que tem gosto de isopor! Mas ela se preocupa comigo e eu procuro cooperar, afinal é para meu próprio bem, não é? Às vezes me aborrece tanto zelo. Ela fica tentando me convencer de corrermos no Aterro do Flamengo, mas sempre dou um jeito de escapar.
Me vi obrigado a mudar de rotina. Isso aqui para mim, por exemplo, é novidade: encarar fila em supermercado! Quando eu sentia fome eu comia qualquer coisa na rua, pedia uma pizza, inventava receitas mirabolantes com miojo...
Há um cartaz pendurado sobre o caixa onde se lê “caixa rápido – até dez volumes”. Tenho a impressão que o gerente escolhe a operadora de caixa mais lerda para essa função! Tudo bem, tudo bem... Confesso que estou mal humorado. Deve ser abstinência de açúcar, sei lá. O fato é que odeio filas, odeio dietas e odeio a maldita balança que debocha de mim. Da última vez que subi nela descobri que em duas semanas eu havia perdido exatos catorze dias de minha vida! E essa fila que não anda?
“Com licença”, diz um rapaz enorme e marombado imediatamente a minha frente, “pode olhar meu lugar enquanto vou ali pegar uma parada?” Consenti e ele deixou o carrinho com suas compras marcando seu lugar na fila. Seis packs de cerveja em lata, algumas peças de carne, cachaça, limão, energéticos... Ele voltou trazendo mais bebida. “Cerveja nunca é de mais, né?”, disse ele todo animado. “Pelo visto vai ser um churrasco e tanto”, disse concordando e morrendo de inveja. Ele saca o celular do bolso da calça camuflada: “Oi, amor! Sim, sim... Não vou esquecer, pode deixar. Beijos, cachorrona!” Quando ele chegou no caixa, pediu a operadora oito pacotes de camisinha. “Sexo também nunca é de mais, né?”
Paguei minhas compras indignado. Aquele sujeito tem a vida que eu pedi a Deus! Forte, boa pinta, curte uma cerva e compra camisinha como se fosse munição para uma metralhadora! Ele é o cara! Assim que eu chegar em casa quebrarei a balança em mil pedaços e ligarei para minha namorada para termos uma conversa muito séria! Essas frescuras de dieta estão oprimindo meu lado selvagem! Preciso resgatar minha masculidade, minha condição de macho! Vou mostrar a ela quem é que manda! Chega de castração!
Quando entro no carro, vejo o sujeito indo até um carro enorme estacionado com um outro sujeito (igualmente enorme) todo tatuado encostado na porta. Eles pareciam discutir e achei que dali sairia uma porrada das feias! Concentrei minha audição e percebi que eles brigavam por causa da carne. Alguma coisa a ver com comprar mais linguiça e menos asa. O tatuado socou o teto do carro: “Você só faz as coisas do seu jeito!” O outro segurou-o pelo braço e rebateu: “Porra, vai amassar o carro por causa disso?”, na réplica: “É com esta merda de carro que você se importa?” O outro olhou-o bem nos olhos e disse: “Vou te mostrar com quê me importo!”
Pensei que a porrada fosse começar naquele momento, no entanto eles fizeram as pazes com um vigoroso e másculo beijo na boca com direito a amassos e puxões de cabelo.
_ Anda. Entra no carro e vamos pra casa, cachorrona!
_ Au, au!
Depois de um breve instante me recuperando do choque, peguei o celular e digitei uma sequência de oito dígitos devidamente memorizada.
_ Alô? Oi amor! A corridinha no Aterro amanhã está de pé?

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Mundos que Colidem

Eles se conheceram há menos de trinta minutos e agora têm seus corpos unidos por uma força absolutamente poderosa. Seus corações batem em um ritmo quase uníssono dentro de seus peitos pressionados. Eles dividem o calor de seus hálitos ofegantes e trocam um sorriso desajeitado para amenizar o constrangimento desta intimidade repentina imposta.
Ela costumava ir à faculdade de carro, mas precisou deixar o veículo na concessionária para um recall. Fazia tempo que ela não pegava o metrô, mesmo assim estranhou a quantidade de pessoas que aguardavam a composição na estação Botafogo. Quando as portas se abriram, foi acotovelada deixando seus livros de Direito caírem. Ele surgiu ajudando-a a recolher seu material. Agradeceu a gentileza do rapaz e iniciaram um papo enquanto mais passageiros entravam a cada estação. Ela achou graça do rapaz estar carregando a mochila na frente do corpo. “Bom, é como somos instruídos a carregá-la quando o vagão enche.”, disse ele com um sorriso tentando ajeitar sua bagagem sobre o ombro. Ela achou que era alguma piada. “Isso é brincadeira, não é?”, perguntou rindo. “Está na cara que você não costuma pegar a Linha Dois...”, respondeu-a. O riso dela dissolveu-se como um caracol em contato com sal. Ela já ouvira falar dessa tal “Linha Dois”, mas achava que era alguma lenda. Seu pai costumava ameaçá-la quando criança: “Se não comer todos os legumes vou te levar para passear na Linha Dois do metrô!” Quando adolescente, convenceu-se que aquilo não passava de um mito, assim como o velho do saco, Bicho-Papão e Internet discada (se bem que às vezes ela acha que o tal velho do saco pode ser real). Isso lhe rendeu uma intolerância por legumes e anos de análise.
Só poderia ser mentira. De acordo com as histórias de terror de seu pai, a Linha Dois se escondia logo abaixo da estação Estácio. Era o subterrâneo do subterrâneo. O próprio inferno! Um trem tomado por almas atormentadas que se espremiam em vagões muitas vezes sem ar condicionado. Almas estas que digladiavam por centímetros quadrados assim que as portas se abriam, pisoteando quem estivesse a frente, gritando, ofendendo e agredindo com bolsas e guarda-chuvas. O que prevalecia era a lei do mais forte e ágil, não havia regalias para idosos, gestantes ou deficientes.
O rapaz explicou que recentemente houve obras de extensão e por isso ela acabou se confundindo. “Mas eu estou indo para Saens Peña! O que faço agora?” O rapaz orientou-a a saltar na próxima estação, mas não foi tão simples assim. Chegando na estação Central, um mar de pessoas invadiu o vagão. Ela ficou chocada com uma mulher que foi arremessada de encontro à porta por um homem que segurava o aparelho de celular que tocava uma música de gosto duvidoso em um volume altíssimo.
Foi neste momento que seus corpos colidiram. Ela olhava nos olhos do rapaz desconcertada e pedindo socorro ao mesmo tempo. “Vou saltar em Triagem. Fique comigo e eu a ajudo a sair daqui!”, disse ele com a voz rouca. Ela concordou balançando a cabeça positivamente em um movimento curto. Chegando na estação, ele segurou sua mão e iniciou uma batalha titânica para alcançar a saída. “Haja o que houver não solte minha mão!” Um som de alarme anunciava que as portas se fechariam e eles ainda estavam na metade do caminho. O rapaz fez de sua mochila um escudo e empurrou com toda força a parede humana que bloqueava a passagem. As portas deslizavam e o pé do rapaz alcançou a plataforma. Quando parecia que conseguiriam, o suor fez com que a mão da moça escorregasse. O rapaz não teve tempo de resgatá-la. As portas se fecharam raspando em seus dedos. Eles trocaram um último olhar através do vidro. Ele dizia em seus pensamentos “Eu tentei, me perdoe... Juro que tentei.” Ela põe a mão no vidro e vê a figura do rapaz na plataforma tornando-se cada vez menor à distância.
Em pânico, recolheu-se até um canto onde sentiu-se menos insegura e ali permaneceu imóvel até chegar na estação final. Sentia-se confusa, jamais passara por uma experiência tão assustadora e ao mesmo tempo excitante. Não havia condições de ir à faculdade. Tudo que ela queria era voltar para seu apartamento e se empanturrar com todos os legumes que ela fosse capaz de comer. Certa de que não poria os pés tão cedo no metrô, perguntou a um feirante onde ela poderia pegar um ônibus para chegar à Zona Sul. Quando seus olhos encararam a rodoviária da Pavuna ela teve certeza: “O velho do saco existe e é pra cá que ele traz as crianças!!”