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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Coisas que Não Esquecemos Nunca

Flávia tinha apenas treze anos quando chorou pela primeira vez por alguém. Ainda de uniforme, refugiou-se atrás do ginásio de sua escola onde sua frustração poderia transbordar em forma de lágrimas. Apesar dos olhos marejados, reconheceu Júlio, colega de classe, se aproximando com sua bicicleta.


_Está tudo bem? Por que está chorando?

_ Ah... É o Paulo.

_ Que tem o Paulo?

_ Sabe o que é? É que ele... Ele é um idiota!

Idiota não correspondia ao que de fato Flávia pensava sobre Paulo, mas pareceu-lhe mais apropriado. Confessar que o motivo de seu choro tem a ver com admiração e atração não correspondidas faria ela sim parecer idiota. Paulo é dois anos mais velho, bonito, esportista, divertido... O sonho de todas as meninas e Flávia não era exceção. Descobrir que Paulo mudaria de escola na semana que vem foi um golpe muito forte em suas fantasias.

_ Se ele é um idiota, então esquece ele! Já viu minha bicicleta nova?

_ E daí? É uma bicicleta como qualquer outra, oras.

_ Isso é o que você pensa. Eu a regulei toda! Troquei pneus, lubrifiquei a corrente, acertei a marcha... Quer dar uma volta?

_Não sei andar de bicicleta (olhando para o chão e limpando o nariz).

_ Eu te ensino!

Flávia topou o desafio e Júlio esteve o tempo todo do seu lado. Quando ela perdia o equilíbrio, ele a segurava. Quando ela ganhou confiança, ele a acompanhou correndo a pé. Aprender a pedalar nunca foi uma prioridade na vida de Flávia, mas sempre teve curiosidade. Hoje, comemora esta grande conquista.

Agradecida pela paciência e dedicação de seu colega, Flávia se despede.

_ Se quiser andar de novo é só falar comigo!

O ano letivo terminou. Flávia mudou de escola. Ela nunca procurou Júlio.



...



Dez anos se passaram. Flávia nunca foi fã de exercícios, mas a preocupação com a aparência a fez vencer a preguiça e, aproveitando o verão e o fato de hoje morar perto da orla, calçou seus tênis e pôs-se a caminhar em passos acelerados apreciando as ondas que esmurravam as rochas. Com poucos minutos, já sem fôlego, começou a considerar seriamente algum tipo de tratamento estético ou mesmo cirúrgico que a mantivesse atraente e lhe poupasse de tanto esforço. Quando o ar parecia queimar em seu peito ela decide parar justamente em frente a um outdoor onde havia uma publicidade de roupa íntima masculina. No mesmo instante ela reconheceu o modelo.

_ O cara sempre foi boa pinta – disse uma voz atrás dela – mas quem diria que Paulo se tornaria modelo?

Flávia espantou-se com o sujeito que a abordara montado em uma bicicleta.

_ Perdão, eu o conheço?

_ Sou eu, o Júlio! Fomos colegas de escola.

_ Nossa! É verdade! Quanto tempo! Você está ótimo!

_ Você está linda.

_ Obrigada.

_ Para um idiota, até que nosso amigo ali em cima não fica mal de cueca, não acha?

_ Paulo?! Ah... Ele é bonito sim, mas não é tudo isso. Nunca fez meu tipo.

_ Sei... Deixa eu te pagar uma água de coco?

_ Na verdade estou tentando correr um pouco. Ando muito ociosa e molenga.

_ Bom, então que tal dar uma volta na minha bicicleta enquanto eu bebo água de coco?

_ Acho que não sei mais pedalar. A primeira e última vez foi quando você me ensinou.

_ Esse é o tipo de coisa que não esquecemos nunca. Sobe aí.

Flávia sentiu um pouco de dificuldade, mas logo pegou o jeito. Acelerou pela ciclovia sentindo o vento e o cheiro do mar salgado. “Tente sem as mãos!”, gritou Júlio quando ela retornava. Tomando uma reta, resolveu arriscar. Soltou uma mão, depois a outra. Abriu os braços e sentiu-se um pássaro alçando seu primeiro voo.

Feliz por sua proeza bem executada, ela devolve a bicicleta agradecida. Júlio deixa um cartão com Flávia.

_ Este é meu telefone. Quando estiver com tempo para um papo, me liga.

O verão terminou. Flávia mudou de apartamento. Ela nunca procurou Júlio.



...



Uma década mais tarde, o tempo tornou-se artigo de luxo para Flávia. Sempre atarefada com seus compromissos profissionais, vive no limite de prazos a vencer e de clientes exigentes e apressados. Essa é sua rotina como sócia em uma agência de publicidade. Foi em meio à turbulência que ela se trancou em sua sala e pôs-se a checar a lista de possíveis candidatos a modelo para uma campanha de um perfume recém lançado no mercado. Seu coração quase saltou do peito quando se deparou com o currículo de Paulo. Não se tratava da melhor opção, mas, como pretexto para retomar o contato, ligou para ele e marcou uma entrevista. Combinaram um almoço. Flávia enrubesceu por Paulo lembrar-se dela. O clima foi ficando mais informal e Flávia confidenciou seus sentimentos por ele desde quando o conheceu. Com toda desenvoltura de quem conhece e articula bem seu poder de sedução, Paulo a convenceu de continuarem o papo em um local mais discreto. Foram parar em um quarto de motel onde transaram sem adendos ou notas de rodapé. Eram movimentos ensaiados como quem escova os dentes ou troca o canal da TV. Não que Paulo não soubesse o que fazer, mas Flávia estava com sua mente distante. Foram tantos anos de fantasia com este homem que qualquer desempenho extraordinário por parte dele ficaria aquém de suas expectativas. Enquanto ele investia com vigor entre as pernas de Flávia, ela fechou os olhos, abriu os braços e, por um breve momento, pôde sorrir.

Pediram a conta e, antes de se despedir, Paulo quis saber se ele estava aprovado para o trabalho, como se o que acabaram de fazer fosse a entrevista.

A campanha terminou. Flávia mudou de emprego. Ela nunca mais procurou Paulo.



...



Flávia levou mais dez anos para perceber finalmente que Paulo era o homem perfeito enquanto impossibilidade. Uma vez possível, Paulo valia tanto quanto qualquer outra experiência passageira e sem propósito. Não há razão para arrependimentos, queixas ou mágoas. O papel de menina chorona já não lhe cai bem. Refletia sobre seus quarenta e três anos de idade enquanto sorvia o café expresso na praça de alimentação do shopping que passou a frequentar desde que assumiu a chefia do departamento de marketing de uma multinacional com filial naquele bairro. Foi quando ela reconheceu Júlio na fila do cinema. Flávia notou o belo homem que ele havia se tornado. Lembrou de como ele se preocupou quando a viu chorando, de como ele foi zeloso correndo do seu lado caso ela caísse da bicicleta. Lembrou de como acreditou nela sugerindo que soltasse as mãos. Lembrou de como ele a fez sentir-se mais confiante e, apesar de não ser mais tão jovem nem praticar exercícios, aprendeu que não há nada mais atrativo em alguém que a confiança.

_ Oi, Júlio!

_ Flávia?! Nossa, quanto tempo! Você continua linda!

_ Você também não está nada mal! Desculpe não ter te ligado.

_ Deveria. Esperei que me ligasse.

_ Bom, será que posso me desculpar te pagando uma água de coco?

_ Acho que seria maravilhoso. Sempre sonhei com este dia, mas acho que você demorou um pouco a me fazer este convite.

Antes que Flávia pudesse insistir, uma menina se aproxima agarrando o braço de Júlio.

_ Pai, a sessão já vai começar!

_ Brenda, esta é Flávia, somos amigos desde os tempos de escola. Ajude sua mãe com a pipoca e o refrigerante que já estou comprando os ingressos.

_ Ta bom. Prazer, Flávia.

_ O prazer é meu, Brenda.

Brenda se afasta. Flávia se refaz da surpresa com um sorriso sincero.

_ Ela é linda, Júlio!

_ É sim. Vai fazer treze semana que vem.

_ Que sorte a dela. Você sempre foi muito prestativo com as meninas desta idade.

_ A sorte é minha por esbarrar com mulheres incríveis desde os tempos de escola.

Flávia sorri e uma lágrima escapa sorrateiramente de seu olho.

_ Foi um prazer reencontrá-lo, Júlio. Bom filme para vocês.

_ O prazer é meu, Flávia.

Se abraçaram fortemente, trocaram um beijo no rosto e antes de se distanciarem, Júlio disse no ouvido dela:

_ Espero que não se esqueça que te esperei.

_ Esse é o tipo de coisa que não esquecemos nunca.



Confiante e determinada, Flávia segue seu caminho atraindo os olhares masculinos ao seu redor. Ainda que sozinha, não há porquê ter medo de cair. Decide passar em uma loja de artigos esportivos antes de voltar para o trabalho. Já estava mais que na hora de Flávia arriscar-se em sua própria bicicleta.

4 comentários:

Glaucia disse...

Belo texto!
Maduro, reflexivo e por mais simples que possa parecer é, ao mesmo tempo, impressionante. Afinal, o ser humano tem mais dificuldade mesmo é de enxergar o simples!
Mais uma vez parabéns!!!

Alê disse...

Eu me identifiquei completamente com esse texto, por isso gostei tanto...Depois de chorar com o final , vou ler os demais!
Perfeito
Parabéns

Luck santiago disse...

Maravilhoso cara...
O fato é, que na maioria das vezes, a maturidade para perceber as boas oportunidades só é obtida quando elas já passaram...
Inspirador...
Parabéns.

Priscila Zarth disse...

Um texto interessante e por ele percebe-se sua maturidade. Parabéns, a cada postagem você surpreende mais!