Leitores

segunda-feira, 8 de março de 2010

Famintos

Nunca tive muito talento para cuidar de mim mesmo e meus hábitos alimentares então nunca foram muito saudáveis. Quando trabalhamos, estudamos e moramos sozinhos, a gente acaba se virando com lanches rápidos, práticos e de origem duvidosa. Pouco antes do horário do primeiro tempo de aula, costumava comer em uma pastelaria próxima à faculdade.
Certa feita, lá estava eu com meu pastel de queijo e um caldo de cana quando fui abordado por uma menina andrajosa que não parecia ter mais de seis anos de idade. Ela perguntou se eu poderia lhe pagar um salgado. Ela escolheu o tão conhecido “joelho” de presunto e queijo. Ela recebeu aquele alimento como uma dádiva vinda dos céus, o olhar vívido e um sorriso festivo.
“Como é que se diz?”, perguntou uma senhora encostada no balcão, à minha direita. A menina nada disse. Pegou o joelho das mãos da balconista e saiu em direção à rua. “Falta de educação, sabe nem pedir obrigada!”, disse a mesma mulher, agora com a boca cheia de quibe. “É por isso que eu não pago quando me pedem! É mau costume! Aposto que nem está com fome!”, emendou o homem à minha esquerda com o bigode sujo de risole, segurando uma lata de refrigerante, nitidamente incomodado, não sei ao certo se por eu ter pago o joelho à menina ou por não ter respondido à mulher. O fato é que eu precisaria ter meu espírito completamente surdo para ignorar tamanha gratidão que vibrava daquele pequeno corpo. Evito pensar muito nessas horas, pois sempre encontramos boas razões para negarmos uma ajuda, mesmo que essa razão venha de pessoas sentadas ao seu lado ou de nosso próprio medo de perder nossas migalhas para os pássaros. Por que devemos esperar uma recompensa de alguém que nos honra com a chance de podermos ajudá-la? Talvez seja eu quem devesse agradecer.
Saindo da pastelaria, vi a menina esperando o semáforo fechar para atravessar a rua. Do outro lado, uma menina igualmente mal vestida e visivelmente mais jovem a esperava com os braços apontados para o céu, como quem comemora a grande vitória de seu time do coração. A outra exibia sua conquista como um troféu. Um troféu que foi imediatamente repartido entre as duas com tamanha euforia.
Tal cena fez meu aparelho digestivo interromper seu trabalho e refletir sobre os vários tipos de fome que nos assola. Senti-me um miserável por ter tido a chance de ajudar e ter oferecido tão pouco. Aquelas crianças não conhecem outro sabor senão o da necessidade e, mesmo assim, comemoram seu jantar com a alegria que muitas vezes não sabemos apreciar.
Elas seguem seu caminho incerto de mãos dadas. Seus espíritos estão alimentados e satisfeitos. Decido preencher meu vazio com meus estudos e sigo para meu compromisso, mas não sem antes olhar apiedado os pobres famintos que conferem o troco ainda dentro da pastelaria.

Um comentário:

Anônimo disse...

Pois é, Cliver...
Acho que ajudando - nem que seja um pouquinho - as pessoas, também ajudamos a nós mesmos, nos sentimos mais úteis; sabemos que, sozinhos, não podemos mudar o mundo, mas que podemos fazer alguma coisa.
Se todos se colocassem no lugar dessas pessoas...

Parabéns por abordar o assunto. Hoje, curiosa e coincidentemente, também postei algo com o tema.
Abraço,
Jefferson.