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sexta-feira, 18 de março de 2011

Como Montar uma Banda de Rock - Manual de Sobrevivência

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“Junte sete selos do seu jornal de bairro mais cinco reais e noventa e nove centavos e troque nos postos autorizados por um músico e seu respectivo instrumento! Complete sua coleção e arrase nos shows!!”

Bom seria se fosse algo simples assim. Como todo trabalho em equipe, montar uma banda requer talento para lidar com fatores humanos. Trabalhar com pessoas é sempre um desafio, ainda mais quando nos referimos a um projeto onde cada membro é um artista com suas peculiares interpretações sobre o universo musical.
Na minha opinião, há duas regras a serem observadas para que a proposta funcione: o vocalista canta para o público e os músicos tocam para o vocalista. Se isso estiver bem claro em sua cabeça, sua banda tem boas chances de dar certo, desde que você encontre outras pessoas igualmente adeptas desse pensamento.
Minha experiência no mundo da música me rendeu uma certa bagagem, de modo que me sinto na obrigação de alertar os desbravadores que almejam aventurar-se por essas veredas. Eis os arquétipos que vocês certamente enfrentarão em sua jornada:

Vocalista: Cartão de visita da banda. Todos o encaram como líder e ele faz questão de acreditar nisso. Acha que ninguém na banda leva o trabalho a sério, a não ser ele. Adora ter seu ego massageado e não admite ser menos que o centro das atenções. Sempre armado com discursos ensaiados como se fosse ser abordado a qualquer momento para uma entrevista. Tem o hábito de ensaiar poses na frente do espelho usando o controle remoto como microfone. Colecionador de roupas esquisitas. Se ele também é o letrista, se intitula o poeta incompreendido. Se ele toca algum instrumento (principalmente violão e/ou teclado) é só questão de tempo para ele jogar tudo pro alto para arriscar-se em uma carreira solo.

Guitarrista solo: O egocêntrico. Dedica-se a arrancar de seu instrumento o maior número possível de riffs, escalas pentatônicas, métodos gregos, dedilhados e outras firulas. Vive uma guerra não declarada com o vocalista disputando a atenção de todos. Colecionador de tablaturas e revistas especializadas em equipamentos. Possui uma pedaleira de cinco mil efeitos editáveis (mas só utiliza delay, distorção e phaser). Gasta mais com cordas, palhetas, cabos e outras tralhas para a guitarra que com a própria namorada. Se considera um símbolo máximo de virtuosidade. Possui uma conveniente deficiência auditiva, de modo que faz questão de tocar no volume máximo alegando que não está conseguindo ouvir direito seu instrumento. Sempre muito seguro de si, tem plena convicção que a banda não seria nada se não fosse por ele.

Guitarrista base: O despretensioso. Ganhou um violão de presente da madrinha e se reunia com a turma depois da aula para tocar canções da Legião Urbana e Engenheiros do Hawaí. Nunca pensou em tocar numa banda de modo que vive no limbo entre o acústico e o elétrico. Colecionador de revistas de cifras. Resolveu tocar guitarra por insistência dos amigos. Usa um pedal chorus que veio junto com a guitarra quando comprou de um músico de igreja evangélica. Estará presente em todos os ensaios, mas na verdade preferia estar em casa vendo televisão. Às vezes aumenta o volume de seu instrumento, o que provoca a ira do guitarrista solo. Outras vezes arrisca uma segunda voz (backing), o que acaba provocando as críticas do vocalista. Sempre tem um plano B, caso a banda não dê certo, por isso está sempre se envolvendo em outras coisas para nunca ser bom em nenhuma delas.

Baixista: Uma vez me disseram que “todo baixista é autista”... E são mesmo. Introspectivo, o baixista vive em um mundo só dele. Costuma rir sozinho durante o ensaio. Coleciona amigos imaginários. Se pudesse escolher um poder escolheria o da invisibilidade. Quase sempre passa despercebido no show, a não ser por alguns expectadores mais atentos que estranham “aquele cara tocando aquela guitarra engraçada”. Não tem opinião própria ou se tem não faz a menor questão de expressar.  De certo, é de fácil convívio, mas não espere nenhuma iniciativa. Sua atitude começa e termina em acompanhar as notas musicais fazendo marcação com a bateria. Seu lema é “Não sou contra nem a favor... Muito pelo contrário.”

Baterista: Sempre o primeiro a chegar nos ensaios, pois costumam acontecer em sua casa já que a bateria é um instrumento de difícil locomoção. Tem o hábito de acelerar a execução da música gradativamente enquanto a toca, fazendo com que uma balada romântica se converta em um hard core vigoroso. Se sente injustiçado por ter que se responsabilizar pelo andamento da música e ter que ficar escondido no fundo do palco atrás de suas parafernálias e dos outros músicos. Coleciona vídeo-aulas. Bota pra fora seus fantasmas pessoais através de suas baquetas, faz da música sua válvula de escape. Se quiser dar a ele uma notícia ruim, certifique-se de que há algo inanimado que ele possa espancar. Se compromete com a banda e demonstrará isso tocando, não espere ou exija mais que isso.

Tecladista: Esse sujeito ficava trancado no quarto estudando música desde criança. Alguém descobriu que ele toca e o convidou para entrar na banda. Agora ele tem amigos e incorpora com toda força a idéia de banda como família. Adora ensaiar, mas se sente frustrado, pois tudo que aprendeu sobre piano clássico e música erudita será abstraído e o limitarão a acompanhar a música com estribilhos simplistas e sustentações ultrapassadas. Um dia ele se sentirá sufocado por isso, mas não falará nada para não ofender os amigos. Nesse dia, ou ele tocará como Beethovem ou executará todos com uma metralhadora como Scarface.

Percussionista: Se acha uma espécie de Hermeto Paschoal. Um gênio da sonoridade que arranca melodia de qualquer objeto que emita som. Difícil embarcar em seus devaneios e está sempre experimentando novos ruídos que passarão despercebidos no show. Por falar em despercebido, por quê estou escrevendo sobre percussionista? Ele nem é da banda! Foi convidado para fazer uma pequena participação e agora vai a todo ensaio entulhando o estúdio com um monte de sucata.

Se você é capaz de conviver com personalidades fortes e excêntricas como essas (não esperem nada muito diferente), o desafio está apenas começando. Se sua banda for boa e se tiverem sorte receberão convites para tocar em vários eventos onde não receberão nenhum centavo (sorte porque em muitos casos vocês terão que pagar para tocar). Seu repertório será de noventa por cento de música cover e sempre compararão seu trabalho autoral com outras bandas conhecidas (algumas que você detesta).

No começo tudo pode ser muito divertido, mas, se não houver retorno, banda pode se tornar uma brincadeira muito cara e desgastante. A cada dia me convenço mais que talento e vocação não são fundamentais para alçar voo na carreira artística, portanto, não desanime. O caminho é esse mesmo. Não somos nós que escolhemos a música, é ela quem nos escolhe. O sucesso não é a regra, é a exceção.

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terça-feira, 15 de março de 2011

Uma Longa e Saudável Amizade

_ Ai, Jujuca... Você é a melhor amiga desse mundo inteirinho!!
_ Você pra mim é como uma irmã, Nininha! Seremos amigas pra sempre!!!

...

_ Meu pai vai me dar de presente de aniversário um Falcon, Beto!
_ Grande coisa! Sou mais o Ferrorama que meu padrinho me deu!
_ Os Changemans detonam geral! Não tem pra ninguém!
_ Nem a pau, Juvenal! O Comando Estelar Flashman é o que há!
_ Tenho certeza que o Hulk vence o Homem-Aranha!
_ Como você é teimoso, Juvenal! O Hulk esmagaria o Aranha como um inseto!
_ Vou pra casa jogar meu Master System.
_ Sou mais meu Nintendo...
_ Não sei como você agüenta ouvir Guns n’ Roses, Beto! Banda ridícula!
_ Também não sei qual graça você vê no Ultraje a Rigor! Haja mau gosto!
_ A Nininha te chamou pra festinha Americana dela? Eu vou com meu blusão novo da Company!
_ Não, mas a Jujuca me chamou! Vou estrear meu tênis da Redley pisando nesse seu pano de chão que você chama de blusão!
_ Quer apostar corrida com minha Caloi?
_ Fala sério, Juvenal! Minha Monark vai fazer você comer poeira!
_ Beto, Já reparou nos peitinhos da Nininha?
_ Sou mais a bunda da Jujuca.
_ Gostou do meu carro novo?
_ Tem coragem de chamar esse Kadett de carro novo? Prefiro minha XLX350...
_ Cala a boca e toma um copo!
_ Putz! Malte 90 me dá dor de cabeça! Prefiro Kaiser.
_ Esse seu Menguinho está uma piada, heim?
_ Olha quem fala! Tricolor de bosta!
_ Eu disse que você se casaria primeiro...
_ Vai pro inferno, Juvenal!
_ Sinceramente não sei o que a Nininha viu em você, Beto.
_ Eu também não sei onde a Jujuca estava com a cabeça pra casar com um otário como você.
_ Avisa a seu filho que se eu o pegar olhando pra minha filha de novo dou um tiro nele!
_ Então manda sua filha parar de andar por aí mostrando tudo com aquelas roupinhas indecentes!
_ Vinho tinto ou branco?
_ Nem um nem outro, Juvenal. Você só tem vinho seco e eu só bebo suave.
_ Já viu o novo filme do Quentin Tarantino?
_ Não entendo os filmes dele. Se for pra ver violência prefiro John Woo.
_ Terminei de ler o último livro do Justin Cronin.
_ Toda vez que começo a ler o do Dan Brown que você me emprestou eu pego no sono.
_ Essas lentes de contato me irritam os olhos.
_ Por isso que eu só uso óculos.
_ Por que você não assume seus cabelos brancos e para de pintar esses fiapos grisalhos?
_ Combinado. Mas só se você arrancar esse bigodão tosco da cara!
_ Esse remédio pra coluna não está resolvendo meu problema.
_ Seu problema é velhice, Juvenal... Pra esse mal ainda não inventaram remédio.
_ Esse seu neto é meio mariquinha, Beto! Ao invés de entrar na Internet pra ver mulher pelada, fica só nos jogos online!
_ Pior é o seu que tem até um blog!
_ Bom, vou entrar pois já passam das 18h e eu preciso dormir. Manda um abraço pra Nininha.
_ Boa noite, Juvenal. Manda um abraço pra Jujuca. Dia desses apareçam lá em casa pra jogarmos dominó.
_ Está com Alzheimer, Beto? Esqueceu que as duas não se falam desde aquela festinha americana quando éramos crianças?
_ Verdade... Sabe que nem lembro porque elas deixaram de se falar?
_ Aposto que nem elas...

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O jovem repórter procurou escolher bem as palavras. O entrevistado em questão não era qualquer um. Tratava-se de um músico, compositor, poeta, romancista e escultor de reconhecimento internacional famoso por não gostar de dar entrevistas ou de ser fotografado. Tal exceção só foi possível depois de meses de negociação e duas exigências: que o repórter fosse alguém novo no ramo (não queria repetir as mesmas respostas às mesmas perguntas de décadas atrás) e que a entrevista fosse feita em seu apartamento, uma cobertura em um condomínio de luxo da área nobre da cidade há poucos metros da praia.
Apesar do nervosismo, o jovem repórter conduziu bem as perguntas. A entrevista só foi interrompida quando a esposa do artista entrou com uma bandeja de chá gelado e biscoitos. Há anos que essa gentil mulher despertava a curiosidade do público. Sabia-se pouco sobre ela. A vida amorosa do artista sempre foi muito badalada. Já se relacionou com atrizes, modelos e outras celebridades. Tudo mudou depois do casamento. Levam uma vida discreta, confortável e sem exageros. Mas quem é ela? Como se conheceram? Como alguém tão cobiçado decidiu casar-se com uma mulher desconhecida? Teria ela sido uma de suas fãs? Como ela o conquistou? Apesar da inexperiência, o repórter sabia dos riscos de levar a conversa para o lado pessoal, mas era um assunto tentador demais para ser ignorado. Ele ganharia o respeito de seus colegas de profissão se conseguisse arrancar desta entrevista revelações sobre a vida íntima desse casal. Experimentando um dos biscoitos, ele percebeu o estratagema perfeito:
_ Hmmm... Está uma delícia! Sua mulher quem os fez?
_ Sim, ela gosta de cozinhar.
_ Sei que estamos falando de sua carreira, mas se importa de falar um pouco sobre seu casamento?
_ Que quer saber sobre meu casamento? – Erguendo a sobrancelha.
_ Bom... (engolindo uma saliva que deslizou com dificuldade por sua garganta seca) Nossos leitores ficariam felizes em saber mais sobre a mulher que conquistou seu coração. Muitas mulheres sonham em estar no lugar dela e nada se sabe sobre como tudo aconteceu. Pra começar, ela admira suas canções? Já leu um de seus livros? Ela o acompanha em suas apresentações? Já fez uma canção para ela?
O entrevistado deu um meio sorriso que poderia ser traduzido como um soluço ou impaciência, em seguida ordenou:
_ Desligue o gravador.
Como uma criança que se prepara para receber uma bronca, o repórter afundou-se na poltrona e clicou a tecla pause em seu gravador digital.
_ Se eu fizesse idéia de que seus leitores se interessam por fofoca eu teria pensado melhor sobre conceder esta entrevista. Você é casado, meu jovem?
_ Sou noivo.
_ E o que você procura ser para sua noiva?
_ Acho que tento ser bom para ela.
_ Minha esposa – disse recostando-se no sofá – se chama Rosa. Apesar do nome, sua flor favorita é o crisântemo. Sua cor predileta é amarela. Não fuma. Gosta de licor de menta, mas só depois do jantar. Costuma ler antes de dormir, admira Saramago, mas seu livro de cabeceira é Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez. Detesta novelas, mas gosta de assistir os últimos capítulos. Morre de medo de avião, mas pretende um dia voar de asa-delta. Sempre que se irrita a veia da testa sobressai e o olho esquerdo fica semi-cerrado. Sente cócegas nos pés e atrás do pescoço. Não gosta de ouvir música alta. Não sabe contar piadas e ri de si mesmo quando tenta. Seu passatempo é pintar porcelanas, no resto do dia se ocupa cuidando da casa, de mim e das despesas...
_ Perdão – o repórter o interrompe – Por que está me contando todas essas coisas?
_ Rosa não manifesta qualquer interesse por minhas canções, meus escritos ou qualquer outra coisa ligada à minha carreira. O que nos aproximou foi algo muito maior. Algo que vai além de meus dotes artísticos. Algo que não pode ser escrito, lido ou registrado senão por nós mesmos. Algo que podemos descrever como um desejo imenso de ser bom um para o outro. Por isso, peço que ligue novamente seu gravador e refaça sua pergunta da maneira correta.
O repórter pensou por um instante. Pensou em sua noiva e deu-se conta que nunca se preocupou em decorar a cor, o filme ou o livro que ela mais gostava. Refletiu brevemente e, como quem decifra uma charada, sorriu e reativou o gravador perguntando:
_ Como você se sente por estar casado com seu ídolo?

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Triplo B: O Novo Césio

Não tenho o hábito de escrever sobre o que desconheço. Procuro buscar alguma informação antes de escrever sobre o assunto. Certos temas necessitam de um estudo maior que outro, mas em certos casos (como este) o mínimo de conhecimento é o suficiente para expressarmos uma opinião. Sempre evitei escrever sobre um certo “show de realidade” de conteúdo banal, bizarro e bestial (Triplo B) pois sei que, fale bem ou fale mal, é uma forma de propagandear tal evento televisivo. Semelhante ao Césio 137, o Triplo B é um produto radioativo e igualmente nocivo. Por apenas alguns minutos fiquei exposto às microondas emitidas de meu televisor e percebi que não dava para ficar calado diante de tal ameaça.
Lembro que há alguns anos atrás as pessoas se incomodavam com o excesso de câmeras de vigilância em condomínios fechados. Os moradores se queixavam da falta de privacidade até dentro dos elevadores. As câmeras estão por toda parte. Nas empresas, nas ruas, lojas, em celulares... A vigilância faz parte de nossa rotina e hoje não somente é bem-vinda como tornou-se o objetivo máximo de uma sociedade voyer que sonha com fama e fortuna acima de qualquer coisa.
A proposta de um “zoológico humano” é até interessante, pois propõe uma idéia de estudo comportamental em condições de enclausuramento. O problema é que todo comportamento é manipulado para alcançar altos pontos no ibope. O programa sugere que o habitat natural de um ser humano seja uma mansão com piscina, academia, hidromassagem e todo conforto que o dinheiro possa comprar. As atividades se resumem em festas, preguiça e competições cujo único objetivo é atiçar a ganância. Se há o propósito de mostrar a natureza humana, certamente trata-se do pior lado de nossa natureza. Todo assunto gira em torno de fofocas, intrigas, inveja, futilidades, sexo, materialismo e mentiras. A impressão que dá é que todo discurso produtivo (se é que há algum) deve ser cortado na edição.
Quando levamos em conta a questão da índole, percebemos que os competidores mais populares são justamente aqueles que agem de maneira amoral. A sugestão explícita do programa é a mensagem de libertinagem, sexismo, desprendimento emocional e curtição desmedida e desregrada. Longe de ser preconceituoso, acho que há algo muito errado quando assuntos sérios e de cunho pessoal são tratados de maneira tão vulgar e irresponsável em horário nobre. Tanto faz a orientação sexual de cada um, mas quando isso é explorado como espetáculo circense, nosso conceito de intimidade e família fica seriamente comprometido.
O mais cruel é ter um jornalista renomado, um formador de opinião de alta credibilidade, além de talentoso poeta, se submeter ao papel de comandante desta “nave-mãe” e se referir aos famigerados tripulantes como “nossos heróis”. Esqueçamos bombeiros, médicos, policiais, ambientalistas e outros tantos que abraçam a luta em prol do bem comum colocando a vida alheia acima de seu próprio bem estar. Ser herói ganhou uma nova conotação. Heroísmo é exibir-se em trajes de banho, promover erotismo gratuito e disputar recompensas milionárias.
Até aqui não disse nada que todos já não saibam e, ainda assim, há quem defenda tal entretenimento. Admito que muitas vezes me diverti com situações que não me acrescentaram positivamente em nada (às vezes é bom não nos levarmos tão a sério), mas chegarmos ao ponto de aceitarmos tal distração como assunto principal (jornais, internet, programas de TV...) e meta de nossas vidas é imensamente ofensivo.
Em 1987, o Brasil comoveu-se com a tragédia que marcou milhares de pessoas que tiveram contato com um certo cilindro metálico em Goiânia. Hoje a contaminação ganha formatos mais atraentes. Somos milhares de vítimas voluntárias deste experimento que, diferente do Césio, não gera deformações físicas, mas deforma nosso conceito de moralidade, dignidade, honestidade, bom senso e valores.
Quem acompanha meus textos certamente sentirá falta de um tom mais cômico neste artigo, mas esse assunto não cabe outra abordagem senão a da indignação. Uma coisa é rir de um sujeito que tropeça na lama (não que isso tenha graça), outra coisa é rir de nós mesmos quando estamos até o pescoço na areia movediça.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Cara

Deixa ver... Hmm... Pão integral, leite desnatado, alface hidropônica, rúcula, ricota, biscoito água e sal, suco sem açúcar... Acho que não esqueci nada. Desde o dia em que o médico disse que eu precisava emagrecer minha namorada me obriga a comprar essas coisas. Pior de tudo é pagar tão caro para comprar uns troços que tem gosto de isopor! Mas ela se preocupa comigo e eu procuro cooperar, afinal é para meu próprio bem, não é? Às vezes me aborrece tanto zelo. Ela fica tentando me convencer de corrermos no Aterro do Flamengo, mas sempre dou um jeito de escapar.
Me vi obrigado a mudar de rotina. Isso aqui para mim, por exemplo, é novidade: encarar fila em supermercado! Quando eu sentia fome eu comia qualquer coisa na rua, pedia uma pizza, inventava receitas mirabolantes com miojo...
Há um cartaz pendurado sobre o caixa onde se lê “caixa rápido – até dez volumes”. Tenho a impressão que o gerente escolhe a operadora de caixa mais lerda para essa função! Tudo bem, tudo bem... Confesso que estou mal humorado. Deve ser abstinência de açúcar, sei lá. O fato é que odeio filas, odeio dietas e odeio a maldita balança que debocha de mim. Da última vez que subi nela descobri que em duas semanas eu havia perdido exatos catorze dias de minha vida! E essa fila que não anda?
“Com licença”, diz um rapaz enorme e marombado imediatamente a minha frente, “pode olhar meu lugar enquanto vou ali pegar uma parada?” Consenti e ele deixou o carrinho com suas compras marcando seu lugar na fila. Seis packs de cerveja em lata, algumas peças de carne, cachaça, limão, energéticos... Ele voltou trazendo mais bebida. “Cerveja nunca é de mais, né?”, disse ele todo animado. “Pelo visto vai ser um churrasco e tanto”, disse concordando e morrendo de inveja. Ele saca o celular do bolso da calça camuflada: “Oi, amor! Sim, sim... Não vou esquecer, pode deixar. Beijos, cachorrona!” Quando ele chegou no caixa, pediu a operadora oito pacotes de camisinha. “Sexo também nunca é de mais, né?”
Paguei minhas compras indignado. Aquele sujeito tem a vida que eu pedi a Deus! Forte, boa pinta, curte uma cerva e compra camisinha como se fosse munição para uma metralhadora! Ele é o cara! Assim que eu chegar em casa quebrarei a balança em mil pedaços e ligarei para minha namorada para termos uma conversa muito séria! Essas frescuras de dieta estão oprimindo meu lado selvagem! Preciso resgatar minha masculidade, minha condição de macho! Vou mostrar a ela quem é que manda! Chega de castração!
Quando entro no carro, vejo o sujeito indo até um carro enorme estacionado com um outro sujeito (igualmente enorme) todo tatuado encostado na porta. Eles pareciam discutir e achei que dali sairia uma porrada das feias! Concentrei minha audição e percebi que eles brigavam por causa da carne. Alguma coisa a ver com comprar mais linguiça e menos asa. O tatuado socou o teto do carro: “Você só faz as coisas do seu jeito!” O outro segurou-o pelo braço e rebateu: “Porra, vai amassar o carro por causa disso?”, na réplica: “É com esta merda de carro que você se importa?” O outro olhou-o bem nos olhos e disse: “Vou te mostrar com quê me importo!”
Pensei que a porrada fosse começar naquele momento, no entanto eles fizeram as pazes com um vigoroso e másculo beijo na boca com direito a amassos e puxões de cabelo.
_ Anda. Entra no carro e vamos pra casa, cachorrona!
_ Au, au!
Depois de um breve instante me recuperando do choque, peguei o celular e digitei uma sequência de oito dígitos devidamente memorizada.
_ Alô? Oi amor! A corridinha no Aterro amanhã está de pé?

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Mundos que Colidem

Eles se conheceram há menos de trinta minutos e agora têm seus corpos unidos por uma força absolutamente poderosa. Seus corações batem em um ritmo quase uníssono dentro de seus peitos pressionados. Eles dividem o calor de seus hálitos ofegantes e trocam um sorriso desajeitado para amenizar o constrangimento desta intimidade repentina imposta.
Ela costumava ir à faculdade de carro, mas precisou deixar o veículo na concessionária para um recall. Fazia tempo que ela não pegava o metrô, mesmo assim estranhou a quantidade de pessoas que aguardavam a composição na estação Botafogo. Quando as portas se abriram, foi acotovelada deixando seus livros de Direito caírem. Ele surgiu ajudando-a a recolher seu material. Agradeceu a gentileza do rapaz e iniciaram um papo enquanto mais passageiros entravam a cada estação. Ela achou graça do rapaz estar carregando a mochila na frente do corpo. “Bom, é como somos instruídos a carregá-la quando o vagão enche.”, disse ele com um sorriso tentando ajeitar sua bagagem sobre o ombro. Ela achou que era alguma piada. “Isso é brincadeira, não é?”, perguntou rindo. “Está na cara que você não costuma pegar a Linha Dois...”, respondeu-a. O riso dela dissolveu-se como um caracol em contato com sal. Ela já ouvira falar dessa tal “Linha Dois”, mas achava que era alguma lenda. Seu pai costumava ameaçá-la quando criança: “Se não comer todos os legumes vou te levar para passear na Linha Dois do metrô!” Quando adolescente, convenceu-se que aquilo não passava de um mito, assim como o velho do saco, Bicho-Papão e Internet discada (se bem que às vezes ela acha que o tal velho do saco pode ser real). Isso lhe rendeu uma intolerância por legumes e anos de análise.
Só poderia ser mentira. De acordo com as histórias de terror de seu pai, a Linha Dois se escondia logo abaixo da estação Estácio. Era o subterrâneo do subterrâneo. O próprio inferno! Um trem tomado por almas atormentadas que se espremiam em vagões muitas vezes sem ar condicionado. Almas estas que digladiavam por centímetros quadrados assim que as portas se abriam, pisoteando quem estivesse a frente, gritando, ofendendo e agredindo com bolsas e guarda-chuvas. O que prevalecia era a lei do mais forte e ágil, não havia regalias para idosos, gestantes ou deficientes.
O rapaz explicou que recentemente houve obras de extensão e por isso ela acabou se confundindo. “Mas eu estou indo para Saens Peña! O que faço agora?” O rapaz orientou-a a saltar na próxima estação, mas não foi tão simples assim. Chegando na estação Central, um mar de pessoas invadiu o vagão. Ela ficou chocada com uma mulher que foi arremessada de encontro à porta por um homem que segurava o aparelho de celular que tocava uma música de gosto duvidoso em um volume altíssimo.
Foi neste momento que seus corpos colidiram. Ela olhava nos olhos do rapaz desconcertada e pedindo socorro ao mesmo tempo. “Vou saltar em Triagem. Fique comigo e eu a ajudo a sair daqui!”, disse ele com a voz rouca. Ela concordou balançando a cabeça positivamente em um movimento curto. Chegando na estação, ele segurou sua mão e iniciou uma batalha titânica para alcançar a saída. “Haja o que houver não solte minha mão!” Um som de alarme anunciava que as portas se fechariam e eles ainda estavam na metade do caminho. O rapaz fez de sua mochila um escudo e empurrou com toda força a parede humana que bloqueava a passagem. As portas deslizavam e o pé do rapaz alcançou a plataforma. Quando parecia que conseguiriam, o suor fez com que a mão da moça escorregasse. O rapaz não teve tempo de resgatá-la. As portas se fecharam raspando em seus dedos. Eles trocaram um último olhar através do vidro. Ele dizia em seus pensamentos “Eu tentei, me perdoe... Juro que tentei.” Ela põe a mão no vidro e vê a figura do rapaz na plataforma tornando-se cada vez menor à distância.
Em pânico, recolheu-se até um canto onde sentiu-se menos insegura e ali permaneceu imóvel até chegar na estação final. Sentia-se confusa, jamais passara por uma experiência tão assustadora e ao mesmo tempo excitante. Não havia condições de ir à faculdade. Tudo que ela queria era voltar para seu apartamento e se empanturrar com todos os legumes que ela fosse capaz de comer. Certa de que não poria os pés tão cedo no metrô, perguntou a um feirante onde ela poderia pegar um ônibus para chegar à Zona Sul. Quando seus olhos encararam a rodoviária da Pavuna ela teve certeza: “O velho do saco existe e é pra cá que ele traz as crianças!!”

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Efeito do Tempo e as Amizades

Esse tema foi sugerido por um amigo que, curiosamente, passou a fazer parte de meu círculo de amizades há pouco tempo (nem por isso menos importante que os de longa data). Entendo que cada um de nós representa um complexo e fascinante sistema de engrenagens que necessita de manutenção esporádica adequada. É sempre muito fácil aceitar tudo que nos é semelhante, tudo que nos identificamos. Difícil, porém muito mais estimulante, é aceitar as diferenças. Muitas vezes, nos ocupamos demais em moldar quem participa de nosso convívio de acordo com nossas expectativas, mas não podemos programar a atitude dos outros. Podemos responder por nossos atos, mas não me parece saudável esperar reciprocidade integral. Melhor seria conhecer a si próprio e compreender o próximo.
Assim como tudo que existe, a amizade sofre a ação do tempo e é comum que haja desgastes que necessitem de atenção, mas isso não nos torna menos preciosos. Certos níveis de amizade são resistentes aos efeitos do tempo e espaço, prevalecendo seu frescor independente de distância e período. Cada qual segue seu caminho e não devemos lamentar as idas e vindas, mas sim promover a celebração dessas múltiplas trajetórias.
Ideias contrárias, divergências, críticas... Tudo isso pode ser muito bem-vindo, desde que sejamos flexíveis e saibamos reconhecer o que nos acrescenta. O que sobrar, que nos sirva de alicerce para solidificar nossas relações, pois nos dará o conhecimento necessário para pisarmos com segurança.
Longe de ser uma ciência exata, a amizade também segue suas lógicas... De preferência, mais para biológicas que cronológicas.