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sábado, 27 de fevereiro de 2010

Quantos Corações são Necessários Para Trocar Uma Lâmpada?

Há tempos que meu coração vem se preparando para recebê-la. Ele fez questão de cuidar de cada detalhe, redecorou tudo a seu gosto, apesar de eu achar que ele exagerou um pouco nos tons azuis – Quem mandou revelar a ele sua favorita cor?
Realinhou toda mobília, colocou toalhas limpas no banheiro, encomendou flores diversas para preparar arranjos e espalhar pétalas pela cama e pelo chão do quarto (você não faz idéia de como é difícil achar tulipas esta época do ano).
Espanou e varreu toda poeira, inclusive debaixo do tapete. Tudo para garantir todo conforto que você merece. Mas, algo inesperado aconteceu...
A lâmpada queimou! E agora?
Meu coração desesperou-se. Como isso poderia acontecer? Tudo já estava decidido, resolvido, organizado! E se ela quiser ler um livro? E se ela levantar à noite insone? E se ela tiver medo do escuro? Não bastava trocar a lâmpada, era preciso descobrir a razão. O que teria provocado esta súbita escuridão? Poderia ter sido um curto-circuito? Hm... Uma sobrecarga, na certa. De fato, havia muita energia cercando o coração. Energias que não deveriam ser eliminadas, mas reordenadas, pois cada energia tem sua função.
Perdido no escuro, o coração tropeça em cadeiras e almofadas. Quase deixou um jarro cair. Foi uma verdadeira aventura até alcançar a gaveta onde guardava outra lâmpada para um caso de emergência. Na tentativa de buscar a escada, acabou se descuidando e a lâmpada nova despedaçou-se ao atingir o chão.
Pobre coração... Estava tão ansioso e agora sente-se inútil e culpado por não ter se preparado melhor para acolhê-la. Aflito, sentou-se no escuro engolindo o choro. Tentei acalmá-lo, “o tempo resolve tudo”, disse a ele.
Eis que o dia amanheceu. Bastou abrir as cortinas e deixar o sol entrar. Tudo agora parecia claro. Meu coração não perdeu mais tempo e providenciou o imediato reparo, desejando que você confie nele, que esteja certa de que ele não deixará isso acontecer outra vez.
Sozinho, meu coração é capaz de trocar uma lâmpada, é só uma questão de tempo para o sol voltar a brilhar e iluminar o interior.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Castelo

A casa estava lá, como sempre, mas não parecia a mesma. As paredes, os quadros, os móveis, tudo de acordo como deixei, mas tudo parecia diferente. Acomodo minhas malas em cima do sofá e me sento no chão da sala. Olho ao redor e percebo que a casa parece maior. A casa se queixa pelo tempo que permaneceu trancada e exige uma compensação. Prometo pintá-la muito em breve com cores alegres, um jardim na varanda e novos adornos para a cozinha e banheiro. Irredutível, a casa não manifestou qualquer entusiasmo com minhas promessas. Ela queria mais.
Ainda sem jeito devido à fria recepção de meu lar, resolvi desfazer as malas e cada peça de roupa, cada objeto, cada detalhe me transportava de volta aos braços daquela que me acolheu com seu coração nestes últimos dias em que estive distante de meu habitat natural. Foi ela quem me convenceu a abandonar meu mundo aparentemente seguro e me fez embarcar em uma aventura em nome de um amor que desconhece limites. Foi preciso descer do avião para finalmente conhecer o céu através dos olhos, do sorriso e do toque de minha amada.
De volta a minha solitária existência, continuo a desfazer as malas e encontro um tesouro enterrado entre minhas tralhas. Um CD com um repertório de músicas que remetem a momentos especiais. Uma lembrança artesanalmente confeccionada pela mulher que amo. Coloquei o presente no aparelho de som e deitei-me no chão, usando minha própria roupa como travesseiro. Embalado pelas canções, fechei os olhos e pude sentir a presença dela deitada ao meu lado. Não me atrevi a abrir os olhos ou sequer me mover. Adormeci assim, com a certeza de que ela estava ali comigo, há poucos centímetros de distância.
Já de manhã, precisei abrir os olhos e constatei a triste realidade: ela não estava ali. Arrumando-me para o trabalho, notei que minha casa ainda estava de mau humor. Foi então que comecei a entender aquela súbita mania de grandeza que se apoderou de minha morada, então lhe fiz a promessa que meu lar tanto almejava:
_ Deseja a plenitude? Pois buscarei uma rainha para viver conosco e todos te reconhecerão como um castelo!
A casa mostrou-se, enfim, satisfeita. E uma nova viagem começava a ser planejada.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Cortesia

Em uma remota estrada de uma região montanhosa, havia uma humilde edificação que funcionava como um restaurante de raros freqüentadores. O dono do estabelecimento, um senhor idoso de andar lento e poucas palavras, que trabalhava ali sozinho desde que ficou viúvo há mais de década, procurava agradar como fosse possível seus clientes. No final de cada refeição, ele servia uma xícara de chá feito de ervas aromáticas, receita de sua falecida e saudosa esposa, mas podíamos facilmente identificar a refrescância do hortelã em meio ao exótico e estimulante sabor.
Cada um reagia de uma forma diferente. Uns diziam que não gostavam de chá, ou que não pediram. Outros não falavam nada e deixavam o chá sobre a mesa. Alguns bebiam e saiam sem dizer nada, achando que poderiam ser cobrados por aquele agrado adicional.
Um dia, uma mulher de meia-idade de sorriso fácil, cansada pela longa caminhada, chegou com uma grande mochila nas costas e perguntou se poderia recarregar seu celular. O velho apontou para uma tomada próxima ao balcão. Ela plugou seu carregador e fez uma ligação pedindo um reboque para seu carro enguiçado há alguns quilômetros dali. Com a confirmação que o socorro chegaria lá em quarenta e cinco minutos, sentou-se para esperar. O dono do restaurante surgiu ao seu lado e lhe serviu uma xícara de seu chá especial. A mulher ficou encantada e agradeceu com um olhar cheio de doçura.
Quando finalmente o reboque chegou, a mulher levantou-se e perguntou quanto devia. O ancião respondeu que era cortesia da casa.
_ Como cortesia? Eu não fiz nenhuma refeição!
“Cortesia”, ele repetiu.
A mulher deu uma pausa e, olhando ao redor, captou a mensagem. Ela o abraçou, deu um beijo em seu rosto enrugado e o agradeceu. Ela entrou no reboque e se despediu com um aceno e os olhos rasos d’água, mantendo o amável sorriso. Ela entendeu que o chá era uma cortesia, não àqueles que ali comiam, mas sim a todos que entravam naquele restaurante e, mesmo que por alguns minutos, lhe faziam companhia.