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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Medalha

Esta informação pode chocar muitas pessoas, mas lá vai: sexo não é aquilo que você aprendeu nos filmes pornográficos. A indústria de entretenimento adulto contrata pessoas dispostas a encenar uma alegoria. Tem como proposta o espetáculo explícito para conquistar seus expectadores. Lamento, mas não é real. É um produto que pode e deve ser consumido com a devida moderação, que nos desperta uma saudável curiosidade e que nos ajuda a apimentar nossas relações, mas não nos deixemos enganar. Sexo é importante, mas não é o termômetro de nossas vidas. A qualidade é sempre melhor que a quantidade. Ser insaciável na cama pode causar uma boa impressão no início, mas isso também passa. Ser bom de cama não garante a fidelidade do parceiro. Bom de cama, na verdade, é algo que sequer existe. Virilidade não substitui cumplicidade.
Tudo isso foi dito tão somente para contar a história de Lucileide. Vinte oito anos, casada, gerente financeira. Ela preparava o café da manhã, quando seu celular anuncia o recebimento de uma nova mensagem de texto: “Parabéns! Agora você é medalha de prata! Conheci uma mulher que consegue ser pior que você na cama! Beijos, Walberson.”
Lucileide lembrava bem de Walberson. Tentaram engatar um namoro há uns oito anos, mas terminaram quando ele precisou sair do Rio e foi morar em São Paulo, por conta do trabalho. Não conseguia imaginar porquê ele escreveria aquilo. Só poderia estar brincando. Ela sempre se gabou de sua performance entre quatro paredes. Fazia questão de lembrar sua descendência de sangue quente, neta de italianos e espanhóis.
Passou uma semana incomodada , muitas vezes furiosa, com a mensagem. Por fim, decidiu ligar para ele. Manteve a pose, não tocou no assunto. Walberson disse que estaria no Rio no próximo final de semana e a convidou para almoçar. Mesmo achando muita cara-de-pau, aceitou o convite. Seria a oportunidade perfeita para interrogá-lo.
Durante o almoço, Walberson puxou vários assuntos, mas não demorou muito para Lucileide interrompê-lo:
_ Por que me mandou aquela mensagem?
_ Ah, Lu... Me desculpe! Naquela noite eu tinha conhecido uma mulher linda, modelo, atriz e praticante de pole dance. Estávamos numa festa e mal pude acreditar quando ela me deu bola. Achei que era meu dia de sorte! Levei-a para minha casa e...
_ E?
_ E nada. A mulher era cheia de frescuras, não parava de falar, neurótica com a própria aparência, insegura, imatura... Não rolou química. Foi a pior transa da minha vida! Estava tão decepcionado e chateado que acabei escrevendo aquilo.
_ Quer dizer que agora eu sou “medalha de prata”?
_ Bom, não se ofenda, Lu, mas as coisas não fluíam bem entre nós. Éramos muito jovens, você era muito afobada, desastrada... Sendo muito sincero, foi um alívio quando a empresa me chamou para trabalhar na matriz. Sem ofensas, ok?
Uma das coisas que Lucileide sempre admirou nele era sua sinceridade, mas não precisava tanto. Pediu licença e foi ao banheiro. Quando retornou, estava transfigurada. Pediu a conta ao garçom e foi direto ao assunto:
_ Vamos embora. Não temos muito tempo. Tem um motel aqui perto, vamos no seu carro. Mas que fique bem claro que sou uma mulher casada e isto nunca mais se repetirá, fui clara?
Walberson foi pego de surpresa, mas acatou.
Pegaram uma suíte super master presidencial mega plus king size top cinco estrelas. Durante duas horas, Lucileide deu o seu melhor. Fizeram de tudo em todas as posições e inventaram algumas novas. Não era tesão, era questão de honra! Não se rendeu pelo cansaço. Mais que sexo, isto seria um ato heroico. Uma façanha digna de uma amazona. Seu nome ficará registrado na memória deste homem como a experiência erótica mais incrível de sua vida.
Walberson voltou a São Paulo naquela noite. No dia seguinte, Lucileide chega atrasada no trabalho, exausta, mas radiante. Não conseguia conter o sorriso quando lembrava da cara de embasbacado de seu amante quando se despediram. Claro que seu marido não merecia ser traído, mas o prazer de sentir-se vingada era maior que o arrependimento. Se sentia maravilhosamente atraente e segura, quando uma nova mensagem a tirou de seu transe:
“Parabéns. Recuperou sua medalha de ouro. Beijos, Walberson.”


quarta-feira, 22 de maio de 2013

O Dia Que Botei a Polícia Pra Correr


Se você estiver prestes a comprar um carro novo com o dinheiro que vem economizando há anos, aconselho esperar um pouco mais, juntar mais uns trocados e comprar um blindado. Recomendo um tanque Challenger II. Pode pecar em conforto, além de ocupar muito espaço na garagem, mas é o veículo que melhor supre as necessidades do motorista moderno em uma cidade grande, onde o código de trânsito, a política de segurança e os valores sociais não são levados a sério.
Digo isso com o conhecimento de causa de quem sempre morou na mesma rua e dela tinha muito orgulho, até vê-la tomada por obstáculos de concreto e frequentada por jovens municiados de gírias chulas, mau gosto musical e um senso distorcido de patrimônio público.
Sempre há quem critique a ação da polícia, mas não me acho apto a julgar. Assim como os profissionais da área de Educação e da Saúde, os policiais são massacrados pelo poder do Estado, mau remunerados, desacreditados, além de arriscarem a vida em uma guerra onde seu efetivo está em constante desvantagem. Por conta de tudo isso, não me admira o caos social que vivemos e a dúvida em quem podemos confiar, pois os uniformes já não dão certeza do time que cada um está jogando.
Mas, voltando a falar de carro, pensem nas vantagens que um tanque pode oferecer. Você passaria por cima de qualquer barreira, um único disparo faria o trabalho de um milhão de buzinas, sem falar na mulherada que cairia matando quando você chegasse na balada desfilando com seu possante bélico. Mas, não esqueça, se for dirigir, não beba!
Se eu fosse proprietário de um tanque, evitaria algumas dores de cabeça, como na vez que minha esposa e eu estávamos próximos de casa, esperando o semáforo ficar verde, quando um outro carro bateu em minha traseira avariando o porta-malas. Fui checar os danos e qual não foi minha surpresa ao ver que o condutor distraído era um policial militar fardado. Ele disse que iria manobrar o carro para não atrapalhar o trânsito e conversarmos sobre os danos que ele causou, mas acelerou e fugiu.
Atordoado por ver um homem adulto, um representante da Lei, uma autoridade fugindo de sua responsabilidade, fiquei sem ação. Só despertei do choque quando minha mulher me sacudiu dizendo: “Tá todo mundo olhando! Faz alguma coisa!”.
E fiz. Gritei: “E não volte mais aqui, ouviu? Polícia na minha área não tem vez! Se te pego andando por aqui novamente não vai ficar bonito pra você!”
Desconsiderando os olhares ao redor, entramos no carro e fomos embora.
Estranhamente, após este evento, meus vizinhos passaram a me cumprimentar com frequência. Os jovens baderneiros deixaram de se reunir em minha calçada e até o lanterneiro que consertou meu carro se recusou a receber pelo serviço. “É por conta da casa, chefe”, disse ele. Achei tamanha generosidade desnecessária, mas aceitei de bom grado. Afinal, é um dinheiro que economizo. Quanto será que custa um tanque?   

quinta-feira, 16 de maio de 2013

O Quarto de Hóspedes


Era a primeira vez que Jandira visitava Gerlane desde o casamento. Sempre foram muito próximas, mas os compromissos profissionais adiaram este reencontro por meses. Finalmente de férias, pôde conhecer a nova casa e a nova vida de sua irmã.
Inquilina de um apartamento de trinta metros quadrados, Jandira encantou-se com a bela e espaçosa casa, com jardim e churrasqueira, bem mobiliada e decorada com apreço. O esposo de Gerlane se chama Joílson. Ele não é o que podemos chamar de um homem fisicamente atraente, mas o que lhe falta em beleza sobra em carisma. Baixinho, calvo, pançudo e orgulhoso proprietário de um bigode antiquado. Ninguém compreende o que Gerlane viu nele, até conhecê-lo melhor.
A conversa rolava regada a aperitivos e cerveja gelada. Riam alto com os comentários divertidos de Joílson e das lembranças de quando eram crianças, como a vez em que Gerlane botou fogo no cabelo da boneca de Jandira, vingando-se do egoísmo da irmã que negou-se a dividir um brigadeiro com ela. Curiosamente, tal evento as uniu ainda mais e sempre fizeram questão de compartilhar tudo.
Já na hora de dormir, Jandira foi conduzida até o quarto de hóspedes, no segundo andar, bem ao lado do quarto do casal.
_ Às vezes Joílson tem insônia – advertiu, Gerlane – e perambula pela casa. Não se assuste se ouvir algum barulho no meio da noite.
_ Verdade – concordando, sempre brincalhão – , perco o sono e desço até a cozinho, onde me distraio com um copo de leite quente enquanto leio o jornal. Não estranhe se, na volta, eu me confundir e entrar no seu quarto e te agarrar por engano, ok?
Todos riram e se despediram desejando boa noite.
Jandira já estava preguiçosamente acomodada, quando decide mandar uma mensagem para Otaviano, através de um dos tantos aplicativos com conexão à internet de seu smartphone, combinando um cineminha para o próximo final de semana, tomando o devido cuidado de escolher bem as palavras, mantendo uma certa formalidade para ficar claro o descomprometimento desta relação. Ambos prezam pela liberdade e a ideia de um namoro sério não faz parte de seus planos no momento.
Quando o sono parecia chegar, Jandira se assusta com um ruído de porta se abrindo. No instante seguinte, a luz do corredor se acende, adentrando pela fresta entre o chão e a porta do quarto. “Deve ser Joílson, insone”, tranquilizou-se.
De repente, um par de sombras denuncia que há alguém parado diante da porta e ali permanecem por longos segundos, até se moverem em direção à escada. Som de passos se distanciando e, subitamente, a luz é apagada.
Olhou para o relógio: Duas e quinze. Gerlane sempre teve o sono pesado, nem deve notar quando o marido sai da cama. Mas o que interrompeu o itinerário de Joílson que o fez parar diante da porta? Foi aí que Jandira lembrou da brincadeira do cunhado, sobre entrar no quarto de hóspedes por engano. Seria mesmo brincadeira? E se de fato ele entrar? E se for de propósito? Não seria de admirar que ele se sentisse atraído por ela. Gerlane e a irmã são igualmente bonitas, mas Jandira sempre se valeu de ser mais alta e quatro anos mais jovem. Costuma chamar a atenção dos rapazes do trabalho, da faculdade e da academia.
Só pode ser isso. Canalha! Lembrou de como ele a abraçou e beijou no dia do casamento. Poderia ser só empolgação, mas algo parecia suspeito naquela exagerada demonstração de carinho. E ela ainda foi madrinha deles, que safado!
Norteada por um misto de decepção, asco e raiva, Jandira sabia exatamente o que fazer caso ele entrasse naquele quarto: iria golpeá-lo com toda força bem nas “bolas”! Ele gritaria de dor, acordaria Gerlane e iriam se divorciar. Isso que ele merece por pensar em traí-la!
Por outro lado, e se ele a desejar muito e for violento? Não o conhecia na intimidade, não saberia do que ele é capaz para ter o que quer. Jandira fica assustada. Pode sentir seu coração sacudindo o delicado tecido de sua camisola. Se sente acuada e desejaria que Otaviano estivesse ali com ela pra protegê-la com seus braços fortes. Sente um bolo seco na garganta impossível de engolir.
O que Joílson estaria planejando? O que está esperando para pôr em prática seu ataque? Pensou em acordar a irmã, mas ela não acreditaria sem um flagrante. Poderia fugir pela janela, mas é gradeada.
São duas e vinte e oito agora. Só se passaram infinitos treze minutos de agonia. Seria paranoia? Não pode ser. Joílson a cobriu de atenção o dia todo. Este homem a deseja, não há dúvidas. Como lidar com isso? Deveria fingir que está dormindo? Colocaria algo para bloquear a entrada, mas o único móvel pesado suficiente para isso seria a própria cama, pesada demais para ela sozinha mover.
“Ele vai entrar aqui e fazer o que quiser de mim!”, refletia em pânico. Que assim seja, então. Mas não será sem luta. Resistirá como puder e, quando não lhe restar mais forças, seu algoz lhe invadirá agressivamente, mas ela permanecerá em silêncio. Não demonstrará nem um traço de fraqueza ou dor. Não dará este prazer a ele. Assim que amanhecer, fará as malas e irá embora sem se despedir. Nunca mais voltará e jamais tocará neste assunto com ninguém. Este será um segredo que ela levará para o túmulo e sua irmã poderá seguir sua vida casada e feliz, sem conhecer a natureza monstruosa de seu companheiro.
Agora são três e doze da manhã. Nada ainda. Este suspense a tortura. Não suportando mais, decide encarar seu destino. Com as pernas trêmulas, caminha até a porta. O corredor está escuro. Tateando o corrimão, Jandira desce degrau por degrau na ponta dos pés. Percebe a luz da cozinha acesa. Ela ajeita a alça da camisola que pendia sobre o ombro. Respira fundo e encontra Joílson confortavelmente sentado à mesa, lendo jornal, com o bigode sujo de leite.
Jandira, paralisada, o observa em silêncio, até que ele nota sua presença.
_ Ô, cunhada! Desculpe se a acordei! Perdi o sono e...
Em um movimento brusco, Jandira desarma Joílson de seu jornal e o toma pela mão.
_ Jandira, o que...
_ Nem um pio!! – ameaça Jandira surrando, mas com firmeza – Cacete! Será que não sabe mais onde fica o quarto de hóspedes?!
_ Do que você está falando?? Vai acordar sua irmã!
_ Que se dane! Ela queimou o cabelo da minha boneca, lembra? Anda!       

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Memórias Ortográficas do Cárcere

Pergunte a qualquer mestre de obras e ele confirmará que construir é sempre mais fácil que reformar. Às vezes penso que melhor seria destruir tudo para recomeçar do zero, já que o problema se deu lá no início, por conta de regras arcaicas, cheias de vícios e influências etimológicas das mais diversas. Na verdade pouco importa de quem é a culpa. No final, sempre somos os sacrificados.
Me chamo acento grave e meu nome faz jus ao meu estado de insegurança ortográfica. Alguns insistem erroneamente em me chamar de crase, mas não me ofendo, pois sempre estive por cima e o que vem de baixo não me atinge. Ao primeiro rumor de reforma, apareço como forte candidato à eliminação. Não à toa, pois sempre fui um incômodo para muitos. Quando menos esperam, apareço atrelado àquelas palavras que poucos considerariam suspeitas. Sou polêmico e visto como agitador, fui tachado de subversivo e perseguido. Tentei mobilizar meus companheiros para juntos formarmos uma resistência, mas havia muitos conflitos internos. O acento agudo e eu somos bem parecidos, mas temos inclinações diferentes. Eu sou de esquerda e ele de direita. Agudo gostava de fazer discursos políticos revolucionários motivadores, mas na hora de dar uma ideia ou de tomar uma atitude heroica, foi o primeiro a cair fora.
Meus perseguidores são conhecidos como gramáticos, mas eu prefiro chamá-los de neolinguistas. Hoje, tanto eu quanto os outros acentos gráficos somos monitorados neste campo de concentração. Auschwitz? Muito pior: Alfabetz.
Três estrangeiros especialistas em tortura foram recrutados e agora transitam entre nós sem cerimônias. Suponho que o chefe seja o K, pois costuma desfilar com uma capa. Também tem o W que gosta de rechear seus interrogatórios com muito what, who, when e where. O Y parece meio confuso, não deixa claro seu lugar como vogal ou consoante. Dizem que ele já estava ambientado ao Brasil e é presença garantida em passeatas gays, mas isso já é outra história.
Tanto K quanto Y fazem pose de durões, mas no fundo são dois vaselinas. Já livraram a cara do til, por cooperação, e o circunflexo que se entregou com toda parcimônia, apesar de ter perdido o voo. Quem pega pesado é o W com suas táticas de terror psicológico: “Well, well, well... Você deve se achar muito importante para o mundo, não é mesmo?” Respondo com convicção: “Talvez não para o mundo, mas à língua portuguesa, certamente!”
Aprendi que é preciso ser firme para sobreviver. Já me basta a mutilação que sofri nas últimas reformas, mas são lembranças que me trazem dor somente, por isso não vou entrar em detalhes. O que importa é que ainda estou vivo, mas não posso dizer que outros tiveram a mesma sorte. O trema se foi. Não sei se foi assassinato ou suicídio. Ele sempre foi um covarde. Com frequência se escondia e poucos davam falta. Tremia diante da possibilidade de ser esquecido, não aguentou a pressão e sofreu com as consequências.
O hífen sempre foi um vilão poderoso demais para ser eliminado. O máximo que conseguiram foi um acordo onde ele foi remanejado e novas regras limitaram suas aparições, sem diminuir seu poder de atuação. Ele deixou de ser o mandachuva, mas ainda é o arqui-inimigo.
Desta vez, eles não têm nada contra mim. Sairei desta mais forte e, em breve, todos saberão que sou mais que um mero grafismo. Todos reconhecerão que sou um fenômeno!
Resistir é preciso, mas sem perder a ternura jamais. Por isso, ofereço um brinde à liberdade com este copo d'água que, apesar de fresca, mantém o gosto rebuscado de apóstrofo.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Nunca


Não é de hoje que cogito a possibilidade de ser pai. Protelei muito esperando chegar o momento certo, mas o momento certo nunca chega quando decidimos pensar bem no assunto. Nunca nos achamos suficientemente preparados. Sempre há objetivos a serem alcançados para oferecer um conformo maior ao futuro herdeiro. Claro que nem tudo corre da maneira que planejamos. Certa feita, uma ex-namorada disse estar grávida de um filho meu e exigiu que eu desse o dinheiro para o aborto. Em desacordo com tal atitude, conversei com os pais dela (sem mencionar o interesse da filha em interromper a gestação) e garanti ser capaz de assumir essa responsabilidade. Estranhamente, ela alegou ter passado mal e, com isso, ter perdido a criança que hoje tenho sérias dúvidas se de fato existiu. Anos mais tarde, passei por um episódio no mínimo cômico quando, contrariando todos os métodos contraceptivos, uma namorada suspeitou estar grávida, baseada nos sintomas que ela vinha sentindo. Precisei relembrar a ela de sua condição infértil, levando em conta o período de nossa relação, sem contar com a precaução do uso de preservativos. A reação dela diante de uma gravidez indesejada, que só era possível em sua ansiosa mente, valeu como um aborto de minhas expectativas.
Em ambos os casos, a atitude das supostas mamães comprometeu muito a credibilidade em minhas companheiras, mas em nenhum momento a ideia de eu ser pai deixou de ser bem-vinda.
Longe de conflitos genitores, minha noiva e eu não costumamos tocar no assunto, pois priorizamos algumas metas pessoais antes de pensarmos com mais seriedade no assunto,mas sempre nos sensibilizamos quando vemos um casal desfilando com um bebê de colo.
Uma vez, acompanhei minha noiva em uma reunião de amigos. Todos comprometidos e com filhos. Apesar de bem recebido, optei sentar-me no sofá e me distrair com a TV enquanto todos conversavam, mesmo porque muitos dos assuntos tinham a ver com histórias que eu não fazia parte.
Justo quando eu estava entretido com o DVD do O Rappa, fui surpreendido por Maria Fernanda, filha do casal anfitrião. Muito comunicativa, ela me abordou com um repertório de brincadeiras difícil de resistir e acabei embarcando naquela onda. De repente, ela confessou ser uma vampira e, com o devido cuidado para não me ferir de verdade, mordeu meu braço. Me contorci simulando a dor de ser subjugado por tal criatura das trevas. Foi aí que resolvi dominar a situação e fiz uso de uma conhecida lenda sobre os vampiros:
_ Peraí! Se você é vampira e você me mordeu, então agora eu também sou um vampiro!
Me transfigurei e parti para o contra-ataque. Claro que não seria tão fácil. Ela tinha algumas cartas na manga. Quando finalmente a agarrei, pronto para cravar minhas presas, minha pequena vítima revida:
_ Nuuuuuuuncaaaaaaaaa!!!
Ela bradou apontando as palmas abertas das mãos em minha direção, reproduzindo o som daquilo que seriam raios poderosos.
Fiquei chocado. Eu não estava preparado para aquilo. Atordoado, ainda tentei escapar daquele golpe com o mínimo de dignidade:
_ Você dispara raio das mãos?! Vampiros não fazem isso!
_ É que eu sou uma vampira mutante!!
Aquilo foi demais para mim. Fui derrotado, humilhado, destruído. Por sorte, minha noiva recolheu o que sobrou de mim para me enturmar com seus amigos. Estaria eu realmente a salvo? O que mais esta vampira deixou em mim com sua mordida?
Quando nos despedimos, Maria Fernanda me presenteou com um forte abraço. No carro, fiquei pensando se eu realmente estaria preparado para ser pai. Como competir com tamanho poder imaginativo? Ainda abalado pelo impacto causado pelos raios, percebo que seria melhor descartar essa ideia de filhos. Não tinha me dado conta de como a paternidade pode ser algo tão assustador.
Foi quando paramos no semáforo vermelho que minha noiva tocou no assunto:
_ Reparei você brincando com a Maria Fernanda. Você leva muito jeito com crianças. Talvez seja a hora de começarmos a pensar em ter filhos, que acha?
Instintivamente, respondo em alto e bom som:
_ Nuuuuuuuncaaaaaaaaa!!!
Minha noiva encarou-me com seriedade e quis entender.
_ Nunca?!
Percebendo o quão insensível fui, tentei corrigir-me:
_ Nunca me senti tão preparado para isso, amor!
_ Tá, e por que suas mãos estão com as palmas abertas apontadas em minha direção?
_ É... Uhuuu!! Vamos ter um filho! Bate aqui!

terça-feira, 3 de julho de 2012

Única


Não gosto de mulher. Pronto, disse! Precisava pôr isso pra fora, já estava me fazendo mal.
Não estou dizendo com isso que gosto de homens ou que sou celibatário. Entendam que não tem nada a ver com orientação sexual, mesmo porquê orientar quer dizer levar ou ser levado a uma determinada direção. Sexo não nos guia em direção nenhuma. Sexo quer chegar, seja lá onde for. Sexo não conduz, é conduzido. Sexo não escolhe caminho, sexo se deixa atrair. Sexo se move a partir de um magnetismo que pode ser despertado tanto pelos atrativos mais óbvios como os mais incomuns. Afirmar uma direção exata como “eu gosto de mulher” é ser muito genérico. Quem assume sua preferência levando em conta tão somente o sexo como requisito está disposto a se relacionar com qualquer mulher, ainda que se comporte ou tenha a aparência de um homem, desde que a certidão de nascimento conste como feminino.
Ah, não é isso? Ser mulher tem a ver com aparência e comportamento? Então quem gosta de mulher também está disposto a se relacionar afetivamente com transgêneros, haja vista muitos transexuais serem dotados de uma feminilidade refinada e tão acentuada que deixam muita mulher no chinelo. Tudo bem que estes “dotes” podem causar um desconforto anatômico (principalmente se esse dote for maior que o nosso). Há intervenções cirúrgicas que eliminam essa questão, mas isso é suficiente para declarar-se mulher e nos deixar menos encucados?
Algumas pessoas agregam características às suas preferências: “Eu gosto é de mulher com peitão!”, ou “Mulher pra mim tem que ter bundão!”. Gorda, baixa, magra, alta, preta, amarela... Claro que há atributos que são levados em conta na hora de provocar nosso desejo, mas isto tudo nos limita. Por andar muito de bicicleta, sempre chamei a atenção por conta de minhas pernas, mas eu me sentiria péssimo se uma mulher me desejasse tão somente por esta razão. Eu até poderia fazer disso minha arma de sedução, mas sempre haverá algum maratonista ou jogador de futebol que representariam uma ameaça: “Desculpe, mas temos que terminar. Encontrei um cara que tem coxas mais torneadas que você.”
Às vezes, deixamos passar uma pessoa incrível em nossas vidas só porque ela não tem o formato da orelha que sempre sonhamos. Algumas vezes, cobramos de nós mesmos essas superficialidades. Achamos que nunca encontraremos alguém que nos ame enquanto não perdermos quinze quilos, comprarmos um carro do ano ou aprendermos a coreografia da música da moda. Se alguém se declara apaixonado por nós, chegamos a desacreditá-lo e a repudiá-lo, afinal, como alguém poderia gostar de alguém tão cheio de defeitos?
Antes de responder do que gostamos no outro, é preciso descobrir o que gostamos em nós. O que pretendemos manter conosco. A partir daí, nos policiaremos para que a pessoa que entre em nossa vida venha para acrescentar e promover a manutenção daquilo que nos faz bem, inclusive propondo as devidas transformações quando convenientes.
O que me conquista em alguém é a identificação e o que me instiga são os contrastes.
Definitivamente, não gosto de mulher. Mulher tem um monte por aí de tudo quanto é tipo. Eu gosto é da minha mulher e, esta sim, é única, pois, antes de ser minha, ela sabe ser dela mesma.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Passado Presente



O passado passa, mas para isso ele precisa deixar de ser presente. Para isso, o que aconteceu precisa encontrar um lugar confortável em nossa memória, caso contrário, os eventos se remoem, se espalham, bagunçam tudo como quem exige melhores acomodações. É como criar um tigre em uma pequena jaula de gravetos. A agitação da fera dentro de um espaço impróprio e de grades tão delicadas sempre será uma ameaça de fuga e ataque. Melhor seria devolver o grande felino a seu habitat natural. Se for mantê-lo preso, que haja a estrutura necessária. Que haja espaço suficiente, segurança suficiente e, principalmente, que esteja suficientemente disposto a mantê-lo satisfeito onde está, inclusive alimentando-o de maneira correta, ou achou ser possível manter uma lembrança sem visitá-la e alimentá-la esporadicamente?
Algumas pessoas insistem em promover a celebração do esquecimento. Aquele momento em que decidimos esquecer o que passou e eliminamos todas as evidências daquele evento e criamos regras de como superar tal evento. Na verdade, todo esforço empreendido nada mais é que uma maneira de eternizar o drama. Equivale a quebrar todos os espelhos da casa de um cego. É tão ineficaz quanto ritualizar o desuso, o descarte e a devolução de objetos icônicos, como queimar os mimos de um ex-namorado acreditando que o fogo levará junto todas as lembranças daquele romance frustrado. Tudo isso é combustível, força motora para tudo que fizer dali para frente.
Algumas pessoas promovem a negação como fuga. Repetem insistentemente que certos eventos nunca aconteceram e, muitas vezes, até se convencem disso. Nestes casos, costumam se vitimizar por não compreenderem a razão de um sentimento de desconforto e culpa que os atormentam. Assim como o aluno que não se esforçou no ano letivo, quem não aprende com o passado estará sujeito a repeti-lo.
Recentemente, fui abordado pelo pai de uma mulher com quem me relacionei. O fim de nossa relação foi bastante problemática e o pai, obviamente, ficou do lado da filha, acreditando em tudo que ela dizia, por mais absurdas que fossem suas alegações. Em várias ocasiões, ele foi rude comigo. Me distratou e até me desafiou, mas ele não fez nada disso por ser má pessoa, mas sim por um instinto paternal.
Quando me reconheceu, ele puxou assunto e nos abraçamos. Ele disse o quanto lamentava por tudo que aconteceu e pelo modo como me tratou. Aproveitou para desabafar algumas de suas angústias e desgostos por parte de sua família, inclusive sua filha. Ele esperou catorze anos pela oportunidade de me encontrar e falar todas essas coisas.
Nossa conversa foi breve e nos despedimos, não sem antes um último abraço e a garantia de que não havia qualquer rancor entre nós.
Retomar este assunto me fez perceber com outros olhos a visita de velhos fantasmas que já não são capazes de assombrar, mas fazem questão de arrastar correntes que só fazem ruídos em seus próprios ouvidos. Algumas lembranças são bem-vindas pelo prazer que sua recordação provoca. Outras, nem tão prazerosas, cooperam na busca de momentos positivamente memoráveis.
Não se apaga ou rasura o que fica na lembrança, mas que cada momento encontre seu lugar de conforto no passado. Aquilo que nos queixamos, muitas vezes, é justamente o que nos completa, pois ninguém é feito exclusivamente daquilo que o agrada.