Pergunte a
qualquer mestre de obras e ele confirmará que construir é
sempre mais fácil que reformar. Às vezes penso que
melhor seria destruir tudo para recomeçar do zero, já
que o problema se deu lá no início, por conta de regras
arcaicas, cheias de vícios e influências etimológicas
das mais diversas. Na verdade pouco importa de quem é a culpa.
No final, sempre somos os sacrificados.
Me chamo
acento grave e meu nome faz jus ao meu estado de insegurança
ortográfica. Alguns insistem erroneamente em me chamar de
crase, mas não me ofendo, pois sempre estive por cima e o que
vem de baixo não me atinge. Ao primeiro rumor de reforma,
apareço como forte candidato à eliminação.
Não à toa, pois sempre fui um incômodo para
muitos. Quando menos esperam, apareço atrelado àquelas
palavras que poucos considerariam suspeitas. Sou polêmico e
visto como agitador, fui tachado de subversivo e perseguido. Tentei
mobilizar meus companheiros para juntos formarmos uma resistência,
mas havia muitos conflitos internos. O acento agudo e eu somos bem
parecidos, mas temos inclinações diferentes. Eu sou de
esquerda e ele de direita. Agudo gostava de fazer discursos políticos
revolucionários motivadores, mas na hora de dar uma ideia ou
de tomar uma atitude heroica, foi o primeiro a cair fora.
Meus
perseguidores são conhecidos como gramáticos, mas eu
prefiro chamá-los de neolinguistas. Hoje, tanto eu quanto os
outros acentos gráficos somos monitorados neste campo
de concentração. Auschwitz? Muito pior:
Alfabetz.
Três
estrangeiros especialistas em tortura foram recrutados e agora
transitam entre nós sem cerimônias. Suponho que o chefe
seja o K, pois costuma desfilar com uma capa. Também tem o W
que gosta de rechear seus interrogatórios com muito what,
who, when e where.
O Y parece meio confuso, não deixa claro seu lugar como vogal
ou consoante. Dizem que ele já estava ambientado ao Brasil e é
presença garantida em passeatas gays, mas isso já é
outra história.
Tanto
K quanto Y fazem pose de durões, mas no fundo são dois
vaselinas. Já livraram a cara do til, por cooperação,
e o circunflexo que se entregou com toda parcimônia, apesar de
ter perdido o voo. Quem pega pesado é o W com suas táticas
de terror psicológico: “Well,
well,
well...
Você deve se achar muito importante para o mundo, não é
mesmo?” Respondo com convicção: “Talvez não
para o mundo, mas à língua portuguesa, certamente!”
Aprendi
que é preciso ser firme para sobreviver. Já me basta a
mutilação que sofri nas últimas reformas, mas
são lembranças que me trazem dor somente, por isso não
vou entrar em detalhes. O que importa é que ainda estou vivo,
mas não posso dizer que outros tiveram a mesma sorte. O trema
se foi. Não sei se foi assassinato ou suicídio. Ele
sempre foi um covarde. Com frequência se escondia e poucos
davam falta. Tremia diante da possibilidade de ser esquecido, não
aguentou a pressão e sofreu com as consequências.
O
hífen sempre foi um vilão poderoso demais para ser
eliminado. O máximo que conseguiram foi um acordo onde ele foi
remanejado e novas regras limitaram suas aparições,
sem diminuir seu poder de atuação. Ele deixou de ser o
mandachuva, mas ainda é o arqui-inimigo.
Desta
vez, eles não têm nada contra mim. Sairei desta mais
forte e, em breve, todos saberão que sou mais que um mero
grafismo. Todos reconhecerão que sou um fenômeno!
Resistir
é preciso, mas sem perder a ternura jamais. Por isso, ofereço
um brinde à liberdade com este copo d'água que, apesar
de fresca, mantém o gosto rebuscado de apóstrofo.