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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Pacto Demoníaco

“Tudo que disser poderá ser usado contra você.” Todos já ouvimos esta frase em filmes policiais. Dependendo de como anda seu casamento, esta frase pode sofrer algumas alterações: “Tudo que disser, fizer, pensar ou o oposto de qualquer uma dessas ações poderá ser e indiscutivelmente será usado contra você no tribunal ou em qualquer lugar ou circunstância.”
Acompanhem meu exemplo:
Estávamos minha mulher e eu no carro com minha sogra ao volante. Estávamos indo para casa de uns parentes dela. Chegando no portão da casa, minha sogra foi rendida por dois assaltantes armados exigindo a chave do carro. Por instinto, coloquei-me entre os criminosos e minha sogra. Ela e minha esposa fugiram aos gritos para dentro da casa quando abriram o portão. Um dos bandidos colocou o cano da arma em minha barriga e perguntou se o carro era meu. Disse que sim e ele pediu a chave. Como estávamos em uma vila de casas, processei os dados e soltei a seguinte afirmação: “Esta é uma Vila de policiais militares! Eles vão atirar primeiro e perguntar depois se ouvirem os gritos!” No mesmo instante, esconderam as armas, agradeceram e partiram procurando não chamar atenção. Não morava nenhum policial naquela vila. Minha sogra ainda tem o carro. Minha mulher ficou feliz por não ter que voltar para casa a pé.
Meu sogro tinha duas convicções na vida:
1-     Ele possui o segredo para manter uma família unida e feliz;
2-     Eu não era bom o suficiente para sua filha.
Não foi difícil para ele concluir que havia algo oculto em meu reflexo criativo para evitar o assalto. Armado com sua versão acusativa dos fatos, pôs-se a praguejar:
_ Eu sempre desconfiei que esse rapaz não era flor que se cheire! O que ele fez comprova minha teoria! Ele anda metido com coisa errada! Ele fez dois bandidos armados irem embora sem levarem nada! Estou convencido que ele tem algum trato com o diabo!
Quando descobri o que meu sogro andava espalhando, resolvi confessar-me com ele:
_ O senhor está certo. Eu fiz um pacto com o demônio.
_ Eu sabia! Eu sempre disse a minha filha que você não prestava!
_ Mas calma. Reconheço meu erro e pretendo corrigir tudo. Foi um momento de desespero. Senti-me pressionado por uma série de eventos que atormentavam minha vida e o demônio se fez presente com a proposta de mudar tudo se eu assinasse um contrato com ele. Quando dei por mim já estava dominado por satanás e seus diabólicos asseclas.
_ E como pretende consertar essa grande besteira que fez?
_ Vou enfrentar o demônio. Vou encará-lo e darei fim a este maldito pacto.
_ E o que está esperando? Faça a coisa certa ao menos uma vez e faça logo!
Não havia mais porquê perder tempo. Respirei fundo, caminhei até o quarto, fechei os olhos, concentrei-me e, quando reabri os olhos, vi o demônio. Olhei em seus olhos e disse em um só fôlego:
_ Mulher, quero o divórcio! Aproveita que seu pai está aí e pega uma carona para o inferno de onde nunca deveriam ter saído!
Claro que isso também foi usado contra mim, mas o pacto, enfim, foi desfeito.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Coisas que Não Esquecemos Nunca

Flávia tinha apenas treze anos quando chorou pela primeira vez por alguém. Ainda de uniforme, refugiou-se atrás do ginásio de sua escola onde sua frustração poderia transbordar em forma de lágrimas. Apesar dos olhos marejados, reconheceu Júlio, colega de classe, se aproximando com sua bicicleta.


_Está tudo bem? Por que está chorando?

_ Ah... É o Paulo.

_ Que tem o Paulo?

_ Sabe o que é? É que ele... Ele é um idiota!

Idiota não correspondia ao que de fato Flávia pensava sobre Paulo, mas pareceu-lhe mais apropriado. Confessar que o motivo de seu choro tem a ver com admiração e atração não correspondidas faria ela sim parecer idiota. Paulo é dois anos mais velho, bonito, esportista, divertido... O sonho de todas as meninas e Flávia não era exceção. Descobrir que Paulo mudaria de escola na semana que vem foi um golpe muito forte em suas fantasias.

_ Se ele é um idiota, então esquece ele! Já viu minha bicicleta nova?

_ E daí? É uma bicicleta como qualquer outra, oras.

_ Isso é o que você pensa. Eu a regulei toda! Troquei pneus, lubrifiquei a corrente, acertei a marcha... Quer dar uma volta?

_Não sei andar de bicicleta (olhando para o chão e limpando o nariz).

_ Eu te ensino!

Flávia topou o desafio e Júlio esteve o tempo todo do seu lado. Quando ela perdia o equilíbrio, ele a segurava. Quando ela ganhou confiança, ele a acompanhou correndo a pé. Aprender a pedalar nunca foi uma prioridade na vida de Flávia, mas sempre teve curiosidade. Hoje, comemora esta grande conquista.

Agradecida pela paciência e dedicação de seu colega, Flávia se despede.

_ Se quiser andar de novo é só falar comigo!

O ano letivo terminou. Flávia mudou de escola. Ela nunca procurou Júlio.



...



Dez anos se passaram. Flávia nunca foi fã de exercícios, mas a preocupação com a aparência a fez vencer a preguiça e, aproveitando o verão e o fato de hoje morar perto da orla, calçou seus tênis e pôs-se a caminhar em passos acelerados apreciando as ondas que esmurravam as rochas. Com poucos minutos, já sem fôlego, começou a considerar seriamente algum tipo de tratamento estético ou mesmo cirúrgico que a mantivesse atraente e lhe poupasse de tanto esforço. Quando o ar parecia queimar em seu peito ela decide parar justamente em frente a um outdoor onde havia uma publicidade de roupa íntima masculina. No mesmo instante ela reconheceu o modelo.

_ O cara sempre foi boa pinta – disse uma voz atrás dela – mas quem diria que Paulo se tornaria modelo?

Flávia espantou-se com o sujeito que a abordara montado em uma bicicleta.

_ Perdão, eu o conheço?

_ Sou eu, o Júlio! Fomos colegas de escola.

_ Nossa! É verdade! Quanto tempo! Você está ótimo!

_ Você está linda.

_ Obrigada.

_ Para um idiota, até que nosso amigo ali em cima não fica mal de cueca, não acha?

_ Paulo?! Ah... Ele é bonito sim, mas não é tudo isso. Nunca fez meu tipo.

_ Sei... Deixa eu te pagar uma água de coco?

_ Na verdade estou tentando correr um pouco. Ando muito ociosa e molenga.

_ Bom, então que tal dar uma volta na minha bicicleta enquanto eu bebo água de coco?

_ Acho que não sei mais pedalar. A primeira e última vez foi quando você me ensinou.

_ Esse é o tipo de coisa que não esquecemos nunca. Sobe aí.

Flávia sentiu um pouco de dificuldade, mas logo pegou o jeito. Acelerou pela ciclovia sentindo o vento e o cheiro do mar salgado. “Tente sem as mãos!”, gritou Júlio quando ela retornava. Tomando uma reta, resolveu arriscar. Soltou uma mão, depois a outra. Abriu os braços e sentiu-se um pássaro alçando seu primeiro voo.

Feliz por sua proeza bem executada, ela devolve a bicicleta agradecida. Júlio deixa um cartão com Flávia.

_ Este é meu telefone. Quando estiver com tempo para um papo, me liga.

O verão terminou. Flávia mudou de apartamento. Ela nunca procurou Júlio.



...



Uma década mais tarde, o tempo tornou-se artigo de luxo para Flávia. Sempre atarefada com seus compromissos profissionais, vive no limite de prazos a vencer e de clientes exigentes e apressados. Essa é sua rotina como sócia em uma agência de publicidade. Foi em meio à turbulência que ela se trancou em sua sala e pôs-se a checar a lista de possíveis candidatos a modelo para uma campanha de um perfume recém lançado no mercado. Seu coração quase saltou do peito quando se deparou com o currículo de Paulo. Não se tratava da melhor opção, mas, como pretexto para retomar o contato, ligou para ele e marcou uma entrevista. Combinaram um almoço. Flávia enrubesceu por Paulo lembrar-se dela. O clima foi ficando mais informal e Flávia confidenciou seus sentimentos por ele desde quando o conheceu. Com toda desenvoltura de quem conhece e articula bem seu poder de sedução, Paulo a convenceu de continuarem o papo em um local mais discreto. Foram parar em um quarto de motel onde transaram sem adendos ou notas de rodapé. Eram movimentos ensaiados como quem escova os dentes ou troca o canal da TV. Não que Paulo não soubesse o que fazer, mas Flávia estava com sua mente distante. Foram tantos anos de fantasia com este homem que qualquer desempenho extraordinário por parte dele ficaria aquém de suas expectativas. Enquanto ele investia com vigor entre as pernas de Flávia, ela fechou os olhos, abriu os braços e, por um breve momento, pôde sorrir.

Pediram a conta e, antes de se despedir, Paulo quis saber se ele estava aprovado para o trabalho, como se o que acabaram de fazer fosse a entrevista.

A campanha terminou. Flávia mudou de emprego. Ela nunca mais procurou Paulo.



...



Flávia levou mais dez anos para perceber finalmente que Paulo era o homem perfeito enquanto impossibilidade. Uma vez possível, Paulo valia tanto quanto qualquer outra experiência passageira e sem propósito. Não há razão para arrependimentos, queixas ou mágoas. O papel de menina chorona já não lhe cai bem. Refletia sobre seus quarenta e três anos de idade enquanto sorvia o café expresso na praça de alimentação do shopping que passou a frequentar desde que assumiu a chefia do departamento de marketing de uma multinacional com filial naquele bairro. Foi quando ela reconheceu Júlio na fila do cinema. Flávia notou o belo homem que ele havia se tornado. Lembrou de como ele se preocupou quando a viu chorando, de como ele foi zeloso correndo do seu lado caso ela caísse da bicicleta. Lembrou de como acreditou nela sugerindo que soltasse as mãos. Lembrou de como ele a fez sentir-se mais confiante e, apesar de não ser mais tão jovem nem praticar exercícios, aprendeu que não há nada mais atrativo em alguém que a confiança.

_ Oi, Júlio!

_ Flávia?! Nossa, quanto tempo! Você continua linda!

_ Você também não está nada mal! Desculpe não ter te ligado.

_ Deveria. Esperei que me ligasse.

_ Bom, será que posso me desculpar te pagando uma água de coco?

_ Acho que seria maravilhoso. Sempre sonhei com este dia, mas acho que você demorou um pouco a me fazer este convite.

Antes que Flávia pudesse insistir, uma menina se aproxima agarrando o braço de Júlio.

_ Pai, a sessão já vai começar!

_ Brenda, esta é Flávia, somos amigos desde os tempos de escola. Ajude sua mãe com a pipoca e o refrigerante que já estou comprando os ingressos.

_ Ta bom. Prazer, Flávia.

_ O prazer é meu, Brenda.

Brenda se afasta. Flávia se refaz da surpresa com um sorriso sincero.

_ Ela é linda, Júlio!

_ É sim. Vai fazer treze semana que vem.

_ Que sorte a dela. Você sempre foi muito prestativo com as meninas desta idade.

_ A sorte é minha por esbarrar com mulheres incríveis desde os tempos de escola.

Flávia sorri e uma lágrima escapa sorrateiramente de seu olho.

_ Foi um prazer reencontrá-lo, Júlio. Bom filme para vocês.

_ O prazer é meu, Flávia.

Se abraçaram fortemente, trocaram um beijo no rosto e antes de se distanciarem, Júlio disse no ouvido dela:

_ Espero que não se esqueça que te esperei.

_ Esse é o tipo de coisa que não esquecemos nunca.



Confiante e determinada, Flávia segue seu caminho atraindo os olhares masculinos ao seu redor. Ainda que sozinha, não há porquê ter medo de cair. Decide passar em uma loja de artigos esportivos antes de voltar para o trabalho. Já estava mais que na hora de Flávia arriscar-se em sua própria bicicleta.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Revelação

O objetivo do terrorismo é promover o terror. Há três meses ele fez seu primeiro contato. Lembro de pensar tratar-se de alguma brincadeira. Recebi no celular o torpedo que dizia: “Eu conheço seu passado”. Não havia como responder, pois a mensagem fora enviada de um número restrito. Toquei minha vida dentro da normalidade. Beijei minha esposa e filha antes de ir trabalhar. Dias depois, recebi um e-mail ameaçador: “O silêncio custa caro.” O que poderia ser isto? Algum tipo de vírus?


Uma semana depois, foi a vez do Orkut me surpreender com um depoimento: “O que seus amigos vão achar quando eu revelar seu maior segredo?” O perfil do usuário sequer possuía uma foto ou qualquer outro elemento que o identificasse. Fiz mentalmente uma lista de prováveis pessoas que conhecesse bem minha vida e que estariam dispostas a me prejudicar. Suspeitei de algumas ex-namoradas, mas não acho que nenhuma delas seria tão engenhosa para armar esse tipo de vingança. Colegas do tempo de escola que peguei no pé? Talvez. Admito que já aprontei bastante na juventude, mas não me lembro de nada que fosse digno de ser usado como chantagem contra mim.

Alguns dias se passaram e o Facebook indicava uma nova mensagem: “Sua família seria capaz de suportar a verdade?”

Respondi a provocação exigindo que se identificasse e dissesse de uma vez por todas o que queria de mim. Só fui respondido no final daquela semana quando entrei no MSN e um tal “O Vigia” surgiu online. “Você não sabe quem sou" – dizia ele – "mas eu o conheço muito bem. Não espero nada de você, apenas desejo que todos saibam do que foi capaz.” Tentei fazer algum acordo. Ofereci o dinheiro que eu guardava no banco para comprar um barquinho, mas ele demonstrou desinteresse em qualquer propina. “Só o que me interessa é desmascará-lo. Não há nada que você possa me oferecer que me faça desistir de minha missão.” Dizendo isto, desconectou-se.

Contratei um detetive particular com experiência em crimes virtuais. Ele tentou rastrear a origem das mensagens, mas todas as suas investidas só nos levaram a um labirinto cada vez mais complexo e insolúvel.

As ameaças ainda se espalharam por todos os sites de relacionamento que eu fazia parte (alguns eu nem lembrava que possuía conta). Foi no Badoo que ele deixou seu último recado: “À meia-noite deste domingo abrirei a caixa de Pandora. Todos saberão o que tentou esconder por tantos anos. Aguarde.”

Ele estava obstinado. Lutei da maneira que me era possível, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Minha esposa, minha filha, meus colegas de trabalho, todos perceberam que algo acontecia comigo. Tenso, já não conseguia dormir ou comer.

Finalmente, chegou o dia da revelação. Temendo a reação de todos, vim parar neste quarto de hotel de quinta categoria com meu laptop. São 23:52h. Em oito minutos ele divulgará em todas as redes sociais o fantasma que sequer desconfiava de sua existência e hoje me assombra.

...

23:55h.

Não há nada que eu possa fazer agora, senão esperar.

Ou será que há?

Num rompante, vasculhei meus contatos na agenda do meu celular. A primeira ligação que fiz foi para minha esposa que, preocupada, quis saber onde eu estava. “Apenas me ouça, amor. Meu tempo é muito curto. Eu te traí com sua melhor amiga e com sua irmã. Sinto muito, mas preciso desligar!” Em seguida liguei para minha mãe: “Lembra do nosso cachorro, o Paschoal? Eu disse que ele caiu da laje, mas fui eu quem o empurrou! Papai está em casa? Deixa eu falar com ele! Pai? Sabe o dinheiro que sumiu do seu cofre? Fui eu! E gastei com bebidas e prostitutas!”. O próximo seria meu patrão: “Chefe? Desculpe te acordar, mas preciso te dizer que todo dia cuspo em seu café e tenho maior tesão na sua mulher. Boa noite!”


Não daria tempo de ligar para todos. Tentei lembrar de tudo que mantive em segredo por anos e encaminhei como mensagem para todos os meus contatos na Internet. Confessei minhas mais íntimas experiências citando o nome de todos os envolvidos. Já que serei desmascarado, farei isso eu mesmo. Não deixarei nenhum segredo para ser revelado por este maldito terrorista ou por qualquer outro. Sou um livro aberto agora. Sei que sofrerei as conseqüências de tudo que disse esta noite, mas que seja assim. Que o véu seja retirado com minhas próprias mãos.

Meia-noite.


O laptop permanece conectado com a página do site que mais freqüento. No topo da página, um aviso diz que há uma nova atualização. Com a mão trêmula, pressiono a tecla F5. A página demora poucos segundos para atualizar, o que me pareceu horas. Enfim, a página reabre. O terrorista publicou uma foto minha quando eu era adolescente fazendo biquinho e um coração estilizado com as mãos. Em baixo, lia-se a seguinte mensagem: “Este usuário já teve perfil no Flogão.”