Leitores

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O jovem repórter procurou escolher bem as palavras. O entrevistado em questão não era qualquer um. Tratava-se de um músico, compositor, poeta, romancista e escultor de reconhecimento internacional famoso por não gostar de dar entrevistas ou de ser fotografado. Tal exceção só foi possível depois de meses de negociação e duas exigências: que o repórter fosse alguém novo no ramo (não queria repetir as mesmas respostas às mesmas perguntas de décadas atrás) e que a entrevista fosse feita em seu apartamento, uma cobertura em um condomínio de luxo da área nobre da cidade há poucos metros da praia.
Apesar do nervosismo, o jovem repórter conduziu bem as perguntas. A entrevista só foi interrompida quando a esposa do artista entrou com uma bandeja de chá gelado e biscoitos. Há anos que essa gentil mulher despertava a curiosidade do público. Sabia-se pouco sobre ela. A vida amorosa do artista sempre foi muito badalada. Já se relacionou com atrizes, modelos e outras celebridades. Tudo mudou depois do casamento. Levam uma vida discreta, confortável e sem exageros. Mas quem é ela? Como se conheceram? Como alguém tão cobiçado decidiu casar-se com uma mulher desconhecida? Teria ela sido uma de suas fãs? Como ela o conquistou? Apesar da inexperiência, o repórter sabia dos riscos de levar a conversa para o lado pessoal, mas era um assunto tentador demais para ser ignorado. Ele ganharia o respeito de seus colegas de profissão se conseguisse arrancar desta entrevista revelações sobre a vida íntima desse casal. Experimentando um dos biscoitos, ele percebeu o estratagema perfeito:
_ Hmmm... Está uma delícia! Sua mulher quem os fez?
_ Sim, ela gosta de cozinhar.
_ Sei que estamos falando de sua carreira, mas se importa de falar um pouco sobre seu casamento?
_ Que quer saber sobre meu casamento? – Erguendo a sobrancelha.
_ Bom... (engolindo uma saliva que deslizou com dificuldade por sua garganta seca) Nossos leitores ficariam felizes em saber mais sobre a mulher que conquistou seu coração. Muitas mulheres sonham em estar no lugar dela e nada se sabe sobre como tudo aconteceu. Pra começar, ela admira suas canções? Já leu um de seus livros? Ela o acompanha em suas apresentações? Já fez uma canção para ela?
O entrevistado deu um meio sorriso que poderia ser traduzido como um soluço ou impaciência, em seguida ordenou:
_ Desligue o gravador.
Como uma criança que se prepara para receber uma bronca, o repórter afundou-se na poltrona e clicou a tecla pause em seu gravador digital.
_ Se eu fizesse idéia de que seus leitores se interessam por fofoca eu teria pensado melhor sobre conceder esta entrevista. Você é casado, meu jovem?
_ Sou noivo.
_ E o que você procura ser para sua noiva?
_ Acho que tento ser bom para ela.
_ Minha esposa – disse recostando-se no sofá – se chama Rosa. Apesar do nome, sua flor favorita é o crisântemo. Sua cor predileta é amarela. Não fuma. Gosta de licor de menta, mas só depois do jantar. Costuma ler antes de dormir, admira Saramago, mas seu livro de cabeceira é Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez. Detesta novelas, mas gosta de assistir os últimos capítulos. Morre de medo de avião, mas pretende um dia voar de asa-delta. Sempre que se irrita a veia da testa sobressai e o olho esquerdo fica semi-cerrado. Sente cócegas nos pés e atrás do pescoço. Não gosta de ouvir música alta. Não sabe contar piadas e ri de si mesmo quando tenta. Seu passatempo é pintar porcelanas, no resto do dia se ocupa cuidando da casa, de mim e das despesas...
_ Perdão – o repórter o interrompe – Por que está me contando todas essas coisas?
_ Rosa não manifesta qualquer interesse por minhas canções, meus escritos ou qualquer outra coisa ligada à minha carreira. O que nos aproximou foi algo muito maior. Algo que vai além de meus dotes artísticos. Algo que não pode ser escrito, lido ou registrado senão por nós mesmos. Algo que podemos descrever como um desejo imenso de ser bom um para o outro. Por isso, peço que ligue novamente seu gravador e refaça sua pergunta da maneira correta.
O repórter pensou por um instante. Pensou em sua noiva e deu-se conta que nunca se preocupou em decorar a cor, o filme ou o livro que ela mais gostava. Refletiu brevemente e, como quem decifra uma charada, sorriu e reativou o gravador perguntando:
_ Como você se sente por estar casado com seu ídolo?

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Triplo B: O Novo Césio

Não tenho o hábito de escrever sobre o que desconheço. Procuro buscar alguma informação antes de escrever sobre o assunto. Certos temas necessitam de um estudo maior que outro, mas em certos casos (como este) o mínimo de conhecimento é o suficiente para expressarmos uma opinião. Sempre evitei escrever sobre um certo “show de realidade” de conteúdo banal, bizarro e bestial (Triplo B) pois sei que, fale bem ou fale mal, é uma forma de propagandear tal evento televisivo. Semelhante ao Césio 137, o Triplo B é um produto radioativo e igualmente nocivo. Por apenas alguns minutos fiquei exposto às microondas emitidas de meu televisor e percebi que não dava para ficar calado diante de tal ameaça.
Lembro que há alguns anos atrás as pessoas se incomodavam com o excesso de câmeras de vigilância em condomínios fechados. Os moradores se queixavam da falta de privacidade até dentro dos elevadores. As câmeras estão por toda parte. Nas empresas, nas ruas, lojas, em celulares... A vigilância faz parte de nossa rotina e hoje não somente é bem-vinda como tornou-se o objetivo máximo de uma sociedade voyer que sonha com fama e fortuna acima de qualquer coisa.
A proposta de um “zoológico humano” é até interessante, pois propõe uma idéia de estudo comportamental em condições de enclausuramento. O problema é que todo comportamento é manipulado para alcançar altos pontos no ibope. O programa sugere que o habitat natural de um ser humano seja uma mansão com piscina, academia, hidromassagem e todo conforto que o dinheiro possa comprar. As atividades se resumem em festas, preguiça e competições cujo único objetivo é atiçar a ganância. Se há o propósito de mostrar a natureza humana, certamente trata-se do pior lado de nossa natureza. Todo assunto gira em torno de fofocas, intrigas, inveja, futilidades, sexo, materialismo e mentiras. A impressão que dá é que todo discurso produtivo (se é que há algum) deve ser cortado na edição.
Quando levamos em conta a questão da índole, percebemos que os competidores mais populares são justamente aqueles que agem de maneira amoral. A sugestão explícita do programa é a mensagem de libertinagem, sexismo, desprendimento emocional e curtição desmedida e desregrada. Longe de ser preconceituoso, acho que há algo muito errado quando assuntos sérios e de cunho pessoal são tratados de maneira tão vulgar e irresponsável em horário nobre. Tanto faz a orientação sexual de cada um, mas quando isso é explorado como espetáculo circense, nosso conceito de intimidade e família fica seriamente comprometido.
O mais cruel é ter um jornalista renomado, um formador de opinião de alta credibilidade, além de talentoso poeta, se submeter ao papel de comandante desta “nave-mãe” e se referir aos famigerados tripulantes como “nossos heróis”. Esqueçamos bombeiros, médicos, policiais, ambientalistas e outros tantos que abraçam a luta em prol do bem comum colocando a vida alheia acima de seu próprio bem estar. Ser herói ganhou uma nova conotação. Heroísmo é exibir-se em trajes de banho, promover erotismo gratuito e disputar recompensas milionárias.
Até aqui não disse nada que todos já não saibam e, ainda assim, há quem defenda tal entretenimento. Admito que muitas vezes me diverti com situações que não me acrescentaram positivamente em nada (às vezes é bom não nos levarmos tão a sério), mas chegarmos ao ponto de aceitarmos tal distração como assunto principal (jornais, internet, programas de TV...) e meta de nossas vidas é imensamente ofensivo.
Em 1987, o Brasil comoveu-se com a tragédia que marcou milhares de pessoas que tiveram contato com um certo cilindro metálico em Goiânia. Hoje a contaminação ganha formatos mais atraentes. Somos milhares de vítimas voluntárias deste experimento que, diferente do Césio, não gera deformações físicas, mas deforma nosso conceito de moralidade, dignidade, honestidade, bom senso e valores.
Quem acompanha meus textos certamente sentirá falta de um tom mais cômico neste artigo, mas esse assunto não cabe outra abordagem senão a da indignação. Uma coisa é rir de um sujeito que tropeça na lama (não que isso tenha graça), outra coisa é rir de nós mesmos quando estamos até o pescoço na areia movediça.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Cara

Deixa ver... Hmm... Pão integral, leite desnatado, alface hidropônica, rúcula, ricota, biscoito água e sal, suco sem açúcar... Acho que não esqueci nada. Desde o dia em que o médico disse que eu precisava emagrecer minha namorada me obriga a comprar essas coisas. Pior de tudo é pagar tão caro para comprar uns troços que tem gosto de isopor! Mas ela se preocupa comigo e eu procuro cooperar, afinal é para meu próprio bem, não é? Às vezes me aborrece tanto zelo. Ela fica tentando me convencer de corrermos no Aterro do Flamengo, mas sempre dou um jeito de escapar.
Me vi obrigado a mudar de rotina. Isso aqui para mim, por exemplo, é novidade: encarar fila em supermercado! Quando eu sentia fome eu comia qualquer coisa na rua, pedia uma pizza, inventava receitas mirabolantes com miojo...
Há um cartaz pendurado sobre o caixa onde se lê “caixa rápido – até dez volumes”. Tenho a impressão que o gerente escolhe a operadora de caixa mais lerda para essa função! Tudo bem, tudo bem... Confesso que estou mal humorado. Deve ser abstinência de açúcar, sei lá. O fato é que odeio filas, odeio dietas e odeio a maldita balança que debocha de mim. Da última vez que subi nela descobri que em duas semanas eu havia perdido exatos catorze dias de minha vida! E essa fila que não anda?
“Com licença”, diz um rapaz enorme e marombado imediatamente a minha frente, “pode olhar meu lugar enquanto vou ali pegar uma parada?” Consenti e ele deixou o carrinho com suas compras marcando seu lugar na fila. Seis packs de cerveja em lata, algumas peças de carne, cachaça, limão, energéticos... Ele voltou trazendo mais bebida. “Cerveja nunca é de mais, né?”, disse ele todo animado. “Pelo visto vai ser um churrasco e tanto”, disse concordando e morrendo de inveja. Ele saca o celular do bolso da calça camuflada: “Oi, amor! Sim, sim... Não vou esquecer, pode deixar. Beijos, cachorrona!” Quando ele chegou no caixa, pediu a operadora oito pacotes de camisinha. “Sexo também nunca é de mais, né?”
Paguei minhas compras indignado. Aquele sujeito tem a vida que eu pedi a Deus! Forte, boa pinta, curte uma cerva e compra camisinha como se fosse munição para uma metralhadora! Ele é o cara! Assim que eu chegar em casa quebrarei a balança em mil pedaços e ligarei para minha namorada para termos uma conversa muito séria! Essas frescuras de dieta estão oprimindo meu lado selvagem! Preciso resgatar minha masculidade, minha condição de macho! Vou mostrar a ela quem é que manda! Chega de castração!
Quando entro no carro, vejo o sujeito indo até um carro enorme estacionado com um outro sujeito (igualmente enorme) todo tatuado encostado na porta. Eles pareciam discutir e achei que dali sairia uma porrada das feias! Concentrei minha audição e percebi que eles brigavam por causa da carne. Alguma coisa a ver com comprar mais linguiça e menos asa. O tatuado socou o teto do carro: “Você só faz as coisas do seu jeito!” O outro segurou-o pelo braço e rebateu: “Porra, vai amassar o carro por causa disso?”, na réplica: “É com esta merda de carro que você se importa?” O outro olhou-o bem nos olhos e disse: “Vou te mostrar com quê me importo!”
Pensei que a porrada fosse começar naquele momento, no entanto eles fizeram as pazes com um vigoroso e másculo beijo na boca com direito a amassos e puxões de cabelo.
_ Anda. Entra no carro e vamos pra casa, cachorrona!
_ Au, au!
Depois de um breve instante me recuperando do choque, peguei o celular e digitei uma sequência de oito dígitos devidamente memorizada.
_ Alô? Oi amor! A corridinha no Aterro amanhã está de pé?