Leitores

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Assine

Estou recolhendo assinaturas.
Eu explico:
É que sou doador voluntário de sangue há mais de década e me dei conta que algo estava errado e, para corrigir tal engano, preciso de assinaturas.
Ficou ainda mais confuso? Darei mais detalhes:
Para doar sangue é necessário preencher vários requisitos. Um deles é assinar um formulário atestando a doação. Acontece que eu só posso responder por mim, mas e quanto a todos que fazem parte de mim?
As pessoas não entram, saem ou transitam por nossas vidas à toa. Em tudo há um propósito, seja lá qual for. Há pessoas que acrescentam, outras que subtraem e não depende muito de nossas escolham para que elas surjam em nosso caminho.
Há pessoas que se tornam tão presentes em nossa vida que temos a plena convicção de que nossa estrutura física e mental foi remodelada conforme os novos dados que nos foram inseridos. Pessoas que agora fazem parte de nosso código genético, de nossa cadeia de DNA. Egoísmo é falar de si mesmo no singular. “Indivíduo plural” é o que somos. É tentador falarmos de nós na primeira pessoa, mas transcreva a história de alguém e logo estará rastreando múltiplas biografias.
Quem é você? Você é o sujeito que acompanha sua trajetória na íntegra. É a pessoa que vê tudo a seu redor, menos seu próprio rosto, se não houver o auxílio de um espelho. Você é o ouvinte de seus discursos mentais, de seus planos secretos, de suas reflexões. Deseja ser alguém além disso? Pois é aí que entram todas as pessoas ao seu redor, inclusive as que apenas esbarram em seu ombro em meio à multidão. Vivemos uma constante conexão, mesmo quando nos julgamos desligados. Nenhum gesto passa despercebido, por isso é bom saber bem o que desejamos passar adiante, pois o que distribuímos sempre retorna e, ao retornar, permita que esse reencontro seja constante e deixe que siga. Seja bom ou ruim, viva o que o mundo oferece, mas nunca se apegue. Deixe o rio correr seu fluxo, pois até uma gota de água no deserto cumpre sua meta com a certeza de um dia voltar a ser oceano.
A tudo sejamos atentos, mas nunca isentos.
Ora esclarecido meus motivos, pretendo em breve doar meu sangue, que não pertence somente a mim. Sendo assim, peço a você, que também sou eu, que autorize tal doação. Ainda tem dúvida de quem estou falando? Você leu até aqui, não foi? Então não se espante. Assine.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Perfeitos

_ Feliz aniversário de namoro!
_ Feliz aniversário de namoro!
_ Quem diria... Faz cinco meses que nos conhecemos naquela feira de livros!
_ Parece que foi ontem. Você estava linda com aquele vestido.
_ E você todo charmoso de gravata!
_ Sabe, eu já tinha perdido as esperanças de encontrar alguém como você. Você é perfeita!
_ Hmm... Obrigada! Também adoro estar com você.
_ Sério mesmo. Já me decepcionei tanto com mulheres loucas, ciumentas, compulsivas, burras... Todas tinham algum defeito, mas você não. Você é tudo que sempre sonhei.
_ Você é encantador...
_ Gostou do restaurante?
_ Sim, é belíssimo. Assim como tudo que você faz é lindo.
_ Eu te amo.
_ Também te amo.
_ Um brinde à perfeição!
_ Um brinde ao nosso amor!
_ Bom, melhor comermos, o jantar parece estar maravi... Ei?! O que você está fazendo?
_ Como assim?
_ Por que está segurando o garfo com a mão esquerda?
_ Ora, eu sou canhota. Nunca percebeu?
_ Confesso que estou surpreso...
_ Algum problema?
_ Sei lá... É meio estranho, né?
_ Como assim?? Isso é normal! Muitas pessoas por aí são canhotas.
_ Muitas pessoas têm câncer e eu não considero isso algo normal.
_ Acha que isso é alguma doença?!
_ Já tentou corrigir isso? Tem tratamento? Você podia imobilizar a esquerda e apenas usar a direita. Com o tempo você acaba se acostumando...
_ Não acredito que estou ouvindo isso!
_ Sabe o que é? É que sempre desejei encontrar a mulher perfeita e eu não contava com essa sua anomalia.
_ Pelo amor de Deus! Sou carinhosa, atenciosa, linda, inteligente... O fato de eu não ser destra configura um defeito?? Se enxerga, você também não é perfeito!
_ Ah, é? O que eu tenho de errado?
_ Ora, esses pêlos aí da sua orelha, por exemplo!
_ Do que você está falando? São só uns pelinhos!
_ São horríveis! Me dão nervoso! Parece uma moita!
_ Mas isso se resolve com uma tesoura e uma pinça, já seu caso é bem mais grave.
_ Chega! Não sou obrigada a ficar aqui ouvindo esses absurdos! Vou embora!
_ Ai, droga...
_ Que foi?
_ Esqueci minha carteira no carro.
_ Está dizendo para eu pagar a conta? Você é muito cara-de-pau mesmo!
_ Olha, desculpe... Acho que ando exigente demais. Pode me perdoar? Juro que serei mais tolerante com você.
_ Hmmm... Que gracinha! Tudo bem, meu peludinho lindo. Vou pedir a conta e vamos continuar nossa comemoração lá no seu apartamento, que tal?
_ Vai pagar com cheque?
_ Vou, por quê?
_ E vai assinar com a mão esquerda?! Na frente de todo mundo?!
_ Você é ridículo...

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Um brinde

Uma querida amiga e eu combinamos uma cerveja no final do expediente de uma sexta e nos encontramos em um botequim no centro do Rio. Vale ressaltar que botequim tem uma conotação mais nobre quando falamos do centro do Rio. Não me refiro a uma birosca ou buteco e sim a um estabelecimento comercial onde um tira-gosto aparentemente comum é servido como uma iguaria exótica de nome impronunciável como “olives pour apreitivo” (azeitonas para aperitivo em francês, mas este é só um exemplo exagerado).
O bar estava cheio, mas conseguimos um bom lugar. Estávamos prestes a pedir nossa cerveja preferida quando notei no cardápio que eles serviam algumas cervejas nacionais pouco conhecidas além de algumas importadas. Como bom apreciador, conhecia (ao menos de nome) algumas marcas e sugeri que experimentássemos uma cerveja artesanal fabricada em Campos do Jordão. Com o consentimento de minha amiga, chamei o garçom e ele nos serviu cheio de cerimônias com taças especiais para degustação.
O que passo a descrever não pode ser comparado a um mero gole de cerveja. Foi um momento mágico, um novo nível de percepção alcançado, uma celebração ao palato apurado, uma inequívoca experiência de erotização dos sentidos comparado a um orgasmo múltiplo em cada fibra de meu ser (confesso, este é outro exemplo exagerado, mas a cerveja era muito boa mesmo). A temperatura exata, a espuma cremosa, o aroma marcante e agradável... Minha amiga e eu nos olhamos, fizemos uma pausa de silêncio em um transe quase espiritual e sorrimos. Um brinde à sabedoria!
Perguntei ao garçom (que a essa altura já nos tratava com a cordialidade e a desenvoltura de um velho conhecido) quanto custava a tal cerveja e fiquei chocado quando ele me disse que custava o triplo de nossa cerveja preferida (detalhe que nossa cerveja preferida ali custava o dobro do valor que eu pagava em um bar perto de minha casa na Zona Norte). Alegamos que foi apenas para matar nossa curiosidade e pedimos nossa cerveja preferida.
Eis que aconteceu algo que não prevíamos... Ao bebermos nossa cerveja de costume, simplesmente não era a mesma coisa. Não havia sabor, não havia prazer, não havia nada além da sensação de frustração. Não tínhamos como voltar atrás. Havíamos comido (bebido, melhor dizendo) do fruto proibido. Tomamos ciência do bem e do mal. Éramos felizes em nossa ignorância, banhamos nossa alma com o sagrado líquido dourado e fomos expulsos do paraíso. Conhecemos a verdade e a verdade nos aprisionou. Nem os fabulosos pastéis de camarão e queijo com tomate seco suprimiram nossa carência.
Depois de mais algumas garrafas, pagamos uma pequena fortuna por nossa extravagância e seguimos nosso caminho.
Semana seguinte minha amiga me ligou e marcamos outra cerveja. Desta vez fomos a um botequim mais modesto com opções facilmente encontradas em qualquer bar. “A cerveja está ótima”, disse ela com o primeiro gole. Concordei balançando a cabeça e disse:
_ Verdade, mas não é a mesma coisa que a...
Ela não me deixou terminar a frase. Segurou meu rosto com ambas as mãos, olhou-me nos olhos com um olhar de fúria e ordenou:
_ Nunca mais fale sobre aquela cerveja!! Aquilo nunca aconteceu, ouviu? Nunca!
Assenti, meio assustado. Ela acomodou-se na cadeira como se nada tivesse acontecido e voltamos a conversar e saborear nossa cerveja que, naquele momento, era única e inigualável (desta vez, sem exageros).
Tínhamos aberto a caixa de Pandora e agora bebíamos para esquecer.
Um brinde à ignorância!