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terça-feira, 29 de junho de 2010

Natureza Vampírica

Vampiros existem? Talvez não sejam tão austeros como o Drácula de Bram Stoker, efeminados como os de Anne Rice ou deformados como o Nosferatu de Friedrich Wilhelm Murnau do expressionismo alemão. Difícil admitir que possam ser algo semelhante aos vampiros de Stephenie Meyer. Minha sobrinha me fez prometer que eu assistiria Crepúsculo (Por que sempre a deixo convencer-me?) e posso afirmar que foi uma experiência literalmente vampírica: o filme sugou-me duas horas de minha vida (sorte eu não ter lido o livro). O sucesso se explica pelo excesso de clichês que sempre funcionam no cinema (amores impossíveis, crise existencial, conflito familiar, barreiras intransponíveis, dilemas de vida ou morte...) somado a interpretações dramáticas exageradas e personagens jovens, charmosos e ricos. Um mix de Barrados no Baile, Melrose, O.C., Buffy, Angel e High School Musical (sem as canções e coreografias). Sou capaz de apostar 400ml de meu O+ que a direção de atores ficou por conta de algum “errepegista”.
Mas, voltando ao mundo real...
Como se não bastasse o ritmo que somos submetidos, os ponteiros do relógio, à rotina e os compromissos inadiáveis, estamos constantemente cercados por cargas negativas que nos exaure as forças. A inveja, a ganância, o desafeto, a intolerância, o ódio... Assim como vírus da gripe, o vampirismo é mutável e nos contagia através do ambiente contaminado. É o desejo de extrair do outro a essência que nos foi roubada. É a busca por uma felicidade prática e descartável. Prazeres momentâneos que não preenchem nosso vazio. É a tortura física e/ou psicológica gratuita meramente para sentir-se melhor que o outro.
Vampiros são parasitas que se aproximam de maneira sedutora, convence-nos de seu amor, nos cobrem de promessas e nos dão as costas tão logo saciados de nosso sangue e seguem em busca de outras vítimas.
É o ciúme que nos castra, nos limita e escraviza. É a vingança por motivos fúteis e a cobrança descabida de favores nunca realizados. É a amizade por conveniência que se dissolve ao primeiro sinal de incompatibilidade.
Se vampiros existem? Sim. E eu já fui mordido.
Uma boa indicação de filme sobre vampirismo: Beleza Americana (Sam Mendes, 1999). O filme descarta os morcegos e caninos afiados, mas revela muito sobre nossa própria natureza e, no final, temos a plena convicção de que algo valioso nos foi sugado.
Na literatura os exemplos são diversos. Existe mais vampirismo nos contos de Nelson Rodrigues que em toda saga Crepúsculo.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O Egoísta

_ Cara, conta novamente aquela história do acampamento!
_ Mas você conhece tão bem esta história que chega a contar melhor que eu!
_ Ah, mas é sempre mais divertido quando o narrador é diegético!
_ Ok, então, vamos lá...


Minha namorada, na ocasião, e eu planejávamos há tempos acamparmos em uma área remota do litoral carioca conhecida como Praia do Perigoso. Às vésperas de nossa aventura, ela me apresentou um amigo, quando estávamos em uma festa (lembro que era o nome de algum apóstolo bíblico, mas não me recordo qual). Comentamos sobre a tal praia e ele ficou todo empolgado, ainda mais quando soube que lá costuma aparecer golfinhos. Ofereceu-se para nos fazer companhia.
O que era para ser um fim de semana romântico tornou-se um inferno. Nosso colega desbravador não sabia ficar calado e reclamava desde as condições das estradas de terra até o tipo de calçado inapropriado, segundo sua avaliação, que minha namorada e eu usávamos. O trajeto não era fácil, mas penoso mesmo era suportar as constantes queixas de nosso bandeirante.
Chegando no local, fomos muito bem recebidos por uma comunidade hippie. Nosso gentil anfitrião chamava-se “Sempre Eterno”. Claro que este não é seu nome de batismo, mas gostei do criativo pleonasmo. Ele também poderia escolher “Infinito Perpétuo”, mas acho que não soaria tão legal. Devidamente acolhidos pelos simpáticos ripongas, fomos convidados para almoçar com eles um fabuloso risoto de mexilhão. Claro que nosso companheiro de viagem “Sempre Chato” precisava fazer uma de suas exigências: “Não tem um feijãozinho, não? Se não tiver feijão eu não como!”
À noite, tivemos que hospedar nosso inconveniente colega em nossa barraca (que acomodava desconfortavelmente duas pessoas). Estava chovendo e ele não trouxe sua própria barraca alegando preferir dormir sob as estrelas. Ele também comeu de nossa comida. Não levou mantimentos afirmando que ele sabia pescar e não fazia muita questão de comida. A essa altura eu já estava preocupado com a integridade de minha namorada se ele resolvesse declarar não sentir falta de sexo...
Na volta, o repertório de reclamações ganhou um agravante, já que não conseguimos ver nenhum golfinho. Quando chegamos à estação de trem (para chegarmos onde deixei o carro), vi uma barraquinha de doces e resolvi comprar um pacote de biscoito recheado de morango (meu preferido). Foi aí que o resmungão materializou-se do meu lado como por encanto e disparou o que para mim foi a gota d’água: “Pô, não compra de morango, não! Compra de chocolate! Eu prefiro chocolate!”
Meio atordoado, tentei explicar que eu não gostava de chocolate, mas ele insistiu: “Todo mundo gosta de chocolate! Quer ser diferente, é? Anda, compra de chocolate, senão não como!”
Apesar do sangue fervendo em minhas veias, mantive a compostura e procurei responder com educação: “Estou comprando com meu dinheiro, portanto comprarei o que eu gosto. Aqui tem o suficiente para nós três, se quiser, mas não vou comprar o de chocolate!”
Visivelmente alterado por ter sido contrariado, o “Sempre Mimado” apontou-me seu dedo acusador e proferiu a pérola definitiva daquele final de semana: “Sabe qual é o seu problema? Você é um tremendo egoísta! Tudo tem que ser do jeito que você quer! Seu egoísta! E-go-ís-ta!!”
_ Hahaha! Eu me acabo com essa história! Que cara sem noção!
_ Se podemos tirar uma lição disso tudo é que devemos ter cuidado ao criticar alguém, pois é nos outros que reconhecemos nossos próprios defeitos.
_ Cara, se isso acontece comigo, juro que arrancava a bermuda desse sujeito e enfiava o pacote de biscoito inteirinho lá onde o sol não bate!
_ E você acha que não tive essa vontade?
_ E por que não fez?
_ É que o biscoito era de morango, lembra? Ele tem predileção por chocolate...

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Cartas de Amor a Quem Possa Interessar

_ Ai, amor... Já falei pra não trazer o laptop pra mesa na hora do jantar!
_ Desculpe, querida. Só estou checando meus e-mails.
_ Aposto que você está visitando aquele blog novamente.
_ Sim, estou, mas acho que vou deixar de segui-lo. Gosto dos textos com críticas bem humoradas e tal, mas ultimamente ele vem escrevendo uns textos tão deprê!
_ Ele deve estar passando por algum momento ruim. Agora anda, me ajude a pôr os pratos.
_ Ops! Olha só, ele acabou de enviar uma nova postagem!
_ “Cartas de Amor a Quem Possa Interessar”... O título é interessante.
_ Vou ler para você:

Conheci uma senhora idosa que costumava sentar-se em uma mesa de praça, daquelas onde alguns jogam dama, baralho, xadrez... Ela se acomodava ali com um caderno, uma caneta e uma velha caixa de sapatos ao lado. Certa feita, eu a abordei perguntando se tratar de um livro que estava escrevendo. Ela me lançou um sorriso amável e respondeu-me que eram apenas cartas.
Todos na rua conheciam a história daquela senhora. Seu ex-marido a abandonou por outra mulher depois de um casamento de doze anos. Ele ainda a procurou, oferecendo amizade, mas não demorou muito para ele se afastar e nunca mais entrar em contato. Seu nome era Antenor.
Um belo dia, soube que ela morreu. Passando em frente a sua casa, resgatei a tal caixa de sapatos que reconheci em meio a um amontoado de velharias em uma caçamba de lixo. Dentro da caixa, havia uma agenda telefônica com páginas amareladas, uma foto em preto e branco do casal e centenas de cartas cuidadosamente organizadas dentro de seus respectivos envelopes, onde se lia no campo do destinatário as seguintes letras: A Q P I. Deduzi que se tratava das iniciais de seu ex-marido.
Certo que a falecida não se incomodaria com minha curiosidade, pus-me a ler todas as cartas. A primeira datava de vinte anos atrás. Não lembro de ter lido na vida algo tão vívido e intenso sobre o amor. Eram declarações apaixonadas de alguém que não demonstrava uma única vírgula de rancor ou mágoa. Cada verso celebrava os momentos de ternura eternizados em seu coração. Uma narrativa comovente de gratidão, ternura e afeto. Meus olhos cansavam à medida que as cartas se tornavam mais recentes e a caligrafia, ora elegante e acadêmica, aos poucos perdia a firmeza nos traços e, em alguns momentos, chegava a ser ilegível.
Não fiz conta das horas que se passaram, mas no horizonte um novo dia despontava. Dentro daquela agenda, encontrei o telefone do homem que inspirou todo aquele manuscrito. Decidi ligar para dar-lhe a notícia sobre a morte da autora e saber se ele gostaria que eu lhe enviasse as cartas pelo correio. Quem atendeu foi uma voz infantil de menina que gritou “vovô, é pra você”.
_ Senhor Antenor? Eu tenho um recado de sua ex-mulher...
Ele ficou inquieto, vociferou interrompendo-me.
_ Essa é boa... Depois de vinte anos essa mulher ainda quer assunto? Será que ela não entende que foi melhor assim? Eu tenho minha vida, minha família, não me interessa nada que venha desta pessoa!
Claro que fiquei surpreso com tal reação e estava prestes a desligar, quando olhei para o nome completo de Antenor na agenda... A Q P I... Fora a primeira letra, as outras nada tinham a ver com o nome dele.
_ Mas, anda, rapaz! Que diabo de recado é esse?
Respirei fundo e passei o recado:
_ Ela mandou dizer que você é um tremendo babaca.
Antes que eu colocasse o fone no gancho, ainda pude ouvir o velho Antenor praguejando.
No dia seguinte, deixei a caixa de sapatos sobre a mesma mesa daquela mesma praça onde nossa romântica escritora se inspirava e, antes de seguir meu caminho, tomei a providência de escrever na tampa da caixa um aviso, para que as cartas pudessem continuar a alcançar seu destino:
“A Quem Possa Interessar.”

_ E aí, gostou?
_ É bonito... Mas é triste também...
_ Ah, vai! Ele chamou o cara de babaca! Isso foi engraçado! Ou não?
_ Será que isso aconteceu mesmo?
_ Não sei... Por via das dúvidas, melhor eu parar de seguir este blog...
_ É... Talvez seja melhor mesmo... Bom, vamos jantar.
_ Sim querida, vamos.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Despertar

A vida é uma coleção de despedidas. Nos despedimos do útero e do leite materno. Damos adeus às fraudas e às roupas que já não nos cabem. Adeus à inocência, aos colegas da escola, aos amigos, aos amores, aos parentes... Estamos sempre nos despedindo e, mesmo assim, nunca nos acostumamos a isso. Sempre lamentamos as despedidas, mesmo daquilo que nos fere. Quem consegue se despedir de suas angústias sem um aperto no peito? Há quem reconheça seus problemas e procura deixar sempre para depois a solução só para manter por perto aquilo que lhe tira o sono. A idéia de morte varia de acordo com a cultura local. Para uns, tormento, drama, saudade... Para outros, transição, alegria, renovação.
Em muitas ocasiões, nos pegamos em busca de um esclarecimento. Uma revelação que nos explique tudo o que passamos, que nos indique o caminho. Quisera a vida ser simples assim. Todos nasceríamos com um guia, um manual de instruções. Por mais que queiramos uma resposta, nem sempre estamos realmente interessados a segui-la. Muitas vezes até sabemos qual caminho que devemos escolher, mas é mais conveniente e menos assustador permanecermos parados no mesmo lugar e implorar por uma luz que, de tão intensa, já nos cegou as vistas.
Queremos respostas, e o erro começa aí. O que devemos desejar não é uma voz que nos mostre a direção. O que devemos buscar é um despertar.
O despertar é sempre mais difícil, pois uma vez que acordamos do transe, não podemos simplesmente fugir da realidade e retornar ao nosso mundo de sonhos ensaiados. Despertar nos faz mergulhar em nossas dúvidas mais honestas e nos afasta de nossas certezas dissimuladas.
É quando despertamos que reconhecemos o valor de cada momento, pois aprendemos que tudo passa. Tanto a dor quanto a delícia se vão para dar lugar a novos eventos dos quais nos despediremos um dia.
Certos eventos (pessoas, momentos, coisas) passam em nossas vidas como um cometa. Um fenômeno raro de extrema beleza e encanto. Um brilho intenso que cruza nosso espaço aéreo deixando um rastro de fascínio e assombro. Ainda assim, sabemos que tudo isso também passará, e nem por isso deixa de ser perfeito.
Ao despertar, compreendemos que cada despedida equivale a um recomeço e o que fica vivo em nossa memória é aquilo que merece ser celebrado com entusiasmo.
Não nos deixemos abater por cometas que se vão, pois, sabemos no fundo de nosso coração que sempre podemos contar com as estrelas.