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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Última Prece

Nossa Senhora Imperfeita, padroeira dos caminhos errôneos e idéias falhas, dirijo-me a ti nesta oração de despedida. Não lhe devo mais tributos ou promessas, não dobrarei seu manto ou curvarei-me diante de seu altar. De certo, podemos afirmar que não farei muita diferença em sua romaria, levando em conta que sempre houve vários seguidores à sua disposição. Eu era apenas mais um servo cego pela esperança e credo. Já larguei sua mão uma vez e me perdi na multidão, hoje, a multidão se coloca entre nós. Sua imagem já não me traz conforto ou alívio e sei que entenderá minha súbita falta de fé.
Não sei bem como dizer o que sinto. Já fui chamado de alquimista das palavras, mas fui rebaixado a um mero canastrão melodramático. Serei o mais conciso possível, sem perder o lirismo lamentoso da narrativa. Ignoremos a ruidosa chuva e o insuportável solo de violino na janela.
Como o amor se converte em indiferença e hostilidade? Influência por conta de sondas alienígenas ou apenas conveniência? Sentir raiva é um recurso prático, de forma que nos sentimos justificados para ferir quem nos quer o bem, sem remorsos, sem olhar para trás.
Através de sua misericórdia, pude ver meu humilde lar converter-se em um majestoso castelo, única e simplesmente para vê-lo demolir. Transitando em meio às ruínas, recolho os cacos e busco apoio em alicerces mais seguros. Estranho como cada pedaço de ladrilho e tijolo parece-me feliz e realizado por seu curto e destrutivo período de nobreza.
Minha gentil santa, hoje percebo sua boa intenção em me fazer acreditar em milagres, mas ambos sabemos que de você não poderíamos esperar tais milagres. Tudo que vinha de você era mero ilusionismo. Mas quem disse que não é possível divertir-se em um espetáculo de pirotecnia, fumaça e espelhos?
Minha Santa Imperfeita, grato sou pelas migalhas que jamais mataram minha fome, mas ofereceram um sabor único ao pouco tempo que fui seu devoto. Grato sou por não passar despercebida em meu coração descrente e, acima de tudo, muito obrigado por deixar registrado em mim a mensagem que jamais esquecerei: Em todos nós há um pouco de santidade... E muito de imperfeição.
Boa noite.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Às Vezes Me Sinto Um Turista Em Meu Próprio Quintal

O dia estava lindo e resolvi aproveitar as belezas naturais que o Rio de Janeiro oferece a seus moradores e visitantes. Escolhi o Pão de Açúcar, um de nossos mais famosos cartões postais. Já estive lá antes, mas esta foi a primeira vez que decido ir sozinho (onde eu estava com a cabeça?). Pensei em subir pela trilha, mas sem companhia o caminho seria ainda mais longo e penoso, então embarguei no bondinho. Pouca coisa na paisagem me era novidade, mas é impossível não se encantar com a geografia, a vegetação e as edificações que compõem o cenário que nos rendeu o título de cidade maravilhosa.Tirei muitas fotos e até flagrei dois micos devorando um filhote de sua própria espécie (nem tudo é belo na natureza). Olhando daqui, Copacabana parece-me uma lembrança distante e fria.
Ainda desconfortável com os sentimentos que me norteiam, sentei-me em uma cadeira diante do espetáculo de um céu e um mar infinitamente azuis e acabei visitando um ponto remoto de acesso ainda mais difícil localizado dentro de mim mesmo. Refleti por um momento e fui tomado por uma súbita consciência de decisões equivocadas. Não sabia bem o porquê, mas, quando me dei conta, eu estava represando um choro que já não suportava manter-se contido. Teria sido o medo? A saudade? A carência ou a indignação? Algo estava engasgado e foi preciso muita força (ou fraqueza?) para não vomitar todo o reboco que insiste em se desprender de meu coração. Um copo de água me ajuda a engolir meu entulho sentimental e me distraio com os turistas que parecem muito mais à vontade que eu em minha própria cidade.
Na descida, tenho a impressão de ter deixado algo para trás. A tristeza ainda está aqui comigo, então, não deve ser nada realmente importante... Quem diria que um pão de açúcar poderia ter um sabor tão amargo?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Priori

Não entendo porque as pessoas costumam dizer “agora está nas mãos de Deus” quando tudo mais falha. A gente tenta por todos os meios resolver os problemas e, depois de termos piorado consideravelmente o que já não estava muito bom, decidimos esperar dos céus uma solução divina. É como se nossa televisão apresentasse um pequeno defeito e decidíssemos, por conta própria, abrir o aparelho e tentar consertar sem entender nada de eletrônica. Depois de arrancarmos tudo do lugar, levaríamos para um técnico especializado e, com a maior cara-de-pau, afirmaríamos que o aparelho nunca havia sido aberto.
Conselho: entregue tudo às mãos de Deus desde o início. De preferência, antes que qualquer problema se manifeste. O problema é que temos a memória fraca e costumamos lembrar que Deus existe apenas nos momentos de dificuldade... Talvez por esta razão esses momentos difíceis insistam em acontecer. Uma forma de atiçar nossa memória.
Pensar em Deus poderia ser encarado como um plano de saúde. Tipo, você não precisa estar doente para possuir um desses planos que garantem atendimento, ambulância, internação, consulta, assistência dentária e tudo o mais. Muito pelo contrário, você precisa estar plenamente saudável para que não haja restrições à adesão de seu plano. Posso estar enganado, mas tenho a impressão que mesmo os mais famosos pastores evangélicos que promovem sessões de curas espirituais não abrem mão de um bom plano de saúde.
Entrega teu caminho ao Senhor e o mais Ele fará, certo? Pois deixe-O fazer desde o começo. Conhece algum administrador melhor para organizar cronogramas, coordenar equipes, acionar áreas competentes, viabilizar meios e otimizar recursos? Deus fez o mundo em seis dias e descansou no sétimo, fez todas as criaturas e com o que sobrou fez o onintorrinco.
Já conheci muita gente preocupada com o fim do mundo. Muitos afirmam que o fim já chegou faz tempo. Estou certo que estamos próximos do grande final, mas enquanto Oscar Niemeyer estiver vivo, não corremos o risco de ver o mundo acabar, afinal, quem vocês acham que Deus vai recorrer na hora de redesenhar tudo?
Certos de que o mundo não vai acabar (pelo menos por enquanto), tudo o mais pode esperar. Tudo isso foi apenas para deixar registrado que confio no tempo de cada um, no tempo das coisas, no tempo de Deus. Pediram-me para esperar e, dessa forma, aguardo na certeza de resultados favoráveis, ainda que eu demore a percebê-los.
Agora e sempre, entrego-me às mãos de Deus. Não como último recurso, mas como princípio fundamental.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Online

“Gatinha underline safada está online agora.”
Nossa, que endereço eletrônico mais sugestivo! Nem me recordo como ela veio parar na minha lista de contatos, mas não dá pra ignorar quando uma gatinha e, ainda por cima safada, aparece assim dando sopa.
_ Olá, tudo bem?
_ Oi, tudo. E com você?
_ Bem também... De onde a conheço?
_ Acho que de algum bate-papo.
Isso não chega a ajudar muito, mas já é um começo. Certamente já conversamos antes, mas não lembro agora. A vida virtual é muito prática, dinâmica e vazia. A gente acaba colecionando contatos só para aumentar nossa lista de “amigos” e depois ninguém faz ideia de onde se conheceram.
_ Qual, seu nome?
_ Melissa.
_ Quantos aninhos?
_ Dezoito. E você? Tecla de onde?
A superficialidade dessa conversa faz parte de um roteiro que sempre recorremos para puxar assunto. Se tudo correr bem, em breve saberemos as preferências um do outro, o signo, o time de futebol e a cor predileta.
_ O que curte?
_ Malhação e balada.
Malhação e balada... Mais uma resposta ensaiada. Uma maneira de se dizer descolada, vaidosa e desprendida. É no mínimo suspeito quando as descrições de nosso contato são tão favoráveis, mas vale a pena deixar rolar e ver onde isso vai chegar.
_ Como você é?
_ Sou morena, olhos azuis, sarada...
_ Nossa, você deve ser linda! Pode ligar a cam?
_ Está com defeito.
_ Hmm, então me mostra uma foto sua.
Ela me enviou a foto... Linda. Absurdamente linda. Maravilhosa. Pra piorar, a danada está de lingerie! Meu coração deu cambalhotas! Olhando de relance ela até lembra aquela atriz norte americana Megan Fox. Peraí... Olhando bem, ela parece muito com a Megan Fox... Ei! Esta é a foto da Megan Fox mesmo! Outra armadilha da Internet: todos somos perfeitos. Montamos personagens com os fragmentos que encontramos espalhados pela rede. Não poderia ficar por baixo, então me descrevi como um guerreiro espartano, só que mais avantajado. Pensei em enviar a foto do Murilo Benício dizendo ser eu, mas preferi manter-me oculto usando no lugar de minha foto a figura de um patinho de borracha.
_ Você me deixou curiosa... Deve ser lindo.
_ É o que mamãe sempre me diz.
_ E ainda por cima tem senso de humor. Gostei de você.
Ela diz isso seguido de alguns “rsrs”, indicando que estava rindo. O papo foi fluindo e não demorou muito para estarmos envolvidos em um clima de sedução e erotismo.
_ Ai, queria sentir você todinho dentro de mim... Você deve ser uma delícia... Me diz o que você faria comigo se eu estivesse aí do seu lado... Tesão...
Quando o clima estava esquentando de verdade, ela pediu um minuto e seu status mudou de disponível para ocupada. Tomei um susto quando meu telefone tocou. Era o Rubens, o Rubão. Capitão do time de futebol do bairro. Deve ter uns quarenta anos ou mais, ostenta um bigodão referto desde quando deu baixa no exército. Homem robusto de comportamento truculento, passos firmes e voz grossa.
_ Fala, Rubão.
_ E aí, cara, beleza? Lembra da mesa de sinuca que encomendei? Chegou ontem! Chega aqui mais tarde para jogarmos! Também comprei duas garrafas de tequila só pra nós! Diversão de macho, que tal?
Empolguei-me com o convite e, ainda com o telefone no ouvido, cliquei para chamar a atenção de Melissa para me despedir. Estranhei a duplicidade do som da campainha...
_ Rubão...
_ Que foi?
_ Que barulho foi esse?
_ Barulho?! Que barulho?
_ Você está no MSN?
_ Eu?! Não, claro que não... Que ideia!
Cliquei mais uma vez para chamar a atenção de Melissa e pude ouvir novamente a reprodução da campainha vindo do outro lado da linha.
_ Rubão, tem certeza que seu computador não está ligado?
_ Ora... É... Tenho, ué!
Chamei a atenção uma vez mais e lá estava novamente a campainha na casa de Rubão.
_ Rubão, este som não seria de alguém chamando sua atenção no MSN?
_ Ah, essa campainha?! É, pois é... É que eu estava online e estão querendo falar comigo, nada de mais...
_ Rubão...
_ O que foi, porra??
_ ...Nada não.
Inventei uma indisposição qualquer e dispensei nossa “diversão de macho”. Melissa volta a estar disponível.
_ Oi, gatinho. Desculpe a demora. Eu estava no telefone. Onde paramos?
_ Melissa...
_ Fala meu gostoso...
_ Você gosta de sinuca e tequila?
“Gatinha underline safada não pode responder agora, pois seu status está definido como offline.”