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sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Livro de Adão

Prezadas leitoras,
Há muito me sensibilizo por todas as dúvidas que pairam em vossas cabeças por conta da crueza exercida por nós homens. Acompanho os conflitos e as aflições que o gênero masculino pratica em seus corações repletos de ternura e compreensão. Não digo que compreendo, mas acompanho.
Em nome de meus iguais, peço desculpas por nossas atrocidades insensíveis e, contrariando todo o risco que estarei assumindo por revelar as palavras a seguir, escrevo esta carta na intenção de esclarecer um pouco de nosso simplório engenho. Não é tarefa difícil compreender nosso mecanismo, haja vista nossa praticidade. A conduta masculina funciona como um interruptor de luz, ou seja, liga e desliga quando conveniente. Já o cérebro feminino está mais para um painel de controle de um Airbus a380, com direito a zonas de turbulência (ao menos uma vez por mês).
Enfim, o universo do macho da espécie é muitíssimo simples de se entender, basta abrir mão de toda a complexidade que seu imaginário feminino é capaz de fantasiar. Não se trata de conspirações, abduções, rede de intrigas, espionagens, etc. Estou abrindo aqui os segredos mais bem guardados sobre nossa índole. Peço que compreendam se, por ventura, eu não conseguir escrever até o fim, pois nunca se sabe o que o clã masculino pode fazer para resguardar seus mais íntimos segredos.
1- Sobre a virilidade na primeira transa: O sentimento mais próximo que a mulher tem do desejo é a raiva. No homem, o sentimento mais próximo do tesão é o medo. O que você pode esperar de uma relação regada à raiva e medo?Sempre bate uma tremenda insegurança. É tanto medo de falhar que tudo o mais acaba dando errado, aí vêm aquelas desculpas ensaiadas. O bom desempenho sexual do homem numa primeira relação está diretamente relacionado com sua capacidade de pensar em outras coisas para manter a calma e evitar a ejaculação precoce (ele estará pensando nas contas pra pagar, no carro quebrado, na unha encravada, em um cavalo morto na estrada...).
2- Sobre as mentiras: Nós homens não sabemos mentir. Sempre nos achamos demasiadamente espertos e articulamos histórias mirabolantes para ocultarmos nossas traquinices. O homem é prolixo quando diz a verdade, pois a verdade nos é monótona. Nosso empenho e engenhosidade em criar “verdades alternativas” são tão fabulosos que não nos contentamos em apenas pregar a mentira, temos necessidade de vivenciá-la, torná-la real. É o nosso momento dramaturgo e nada nos impedirá de convencer ao mundo de nossa versão dos fatos. Nós pecamos pelo nosso ego. Quando um homem chega contanto toda a história com riqueza de detalhes e oferecendo uma lista de pessoas que podem confirmar o que ele diz, certamente ele estará mentindo.
3- Sobre amores do passado: Nenhum homem termina definitivamente um relacionamento. Chega um momento que não dá mais e damos um basta, mas sempre desejamos saber se ela ainda nos deseja, se ainda conseguimos levá-la para cama, se está à nossa disposição... Quem disse que as mulheres ciumentas são paranóicas? Tudo bem, confesso, eu também disse, mas temos que redimi-las. Elas estão certas. Tudo que queremos é uma oportunidade de ter nossa ex implorando para matar a saudade. Algumas vezes ficamos satisfeitos em apenas saber que elas ainda não nos esqueceram, mas, de uma forma geral, queremos a sensação de “assuntos pendentes” e a chance de terminar por cima (ou por baixo, de lado, de ponta cabeça...).
4- Sobre a dificuldade de um homem encarar um compromisso sério: A mulher perfeita para qualquer homem é a imagem de sua própria mãe, uma mulher que nos ama incondicionalmente, que nos adula, nos protege e tolera todas as besteiras que fazemos. Nós homens temos “momentos de maturidade”, mas na prática somos eternas crianças. Um compromisso sério exige uma postura mais centrada, otimizada, íntegra. Desejamos nosso espaço, nossa privacidade, mesmo que nem saibamos o porquê. Temos medo de deixar para trás o desprendimento, a liberdade, a vida de solteiro e nossos hábitos rudimentares como declamar impropérios e exercitar sonoras flatulências. Isso mesmo! Às vezes só queremos, literalmente, “aliviar a pressão” e não queremos fazer na frente de nossas damas.
5- Sobre a fixação anal, o machismo e a violência: Considero este o tópico mais delicado, revelador e bombástico. Tratados psicanalíticos comprovam que desde a primeira infância o homem desenvolve tendências em...

Prezadas leitoras,
Decidi, voluntariamente, encerrar esta carta por aqui. Tal decisão nada tem a ver com esses pontinhos rubros luminosos dançando sobre meu peito vindos do helicóptero Black Hawk que acabou de surgir diante de minha janela. Declaro para todos os fins que não estou sendo ameaçado ou coagido. Agora peço licença, pois estão batendo (esmurrando) minha porta e preciso ausentar-me de minhas atividades durante algum tempo. Não reparem se eu precisar mudar de sexo e passar a assinar meus textos com algum pseudônimo. Sempre tive simpatia por Eva, mas aceito sugestões.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

O Deus de Cada Um

Certa feita, uma amiga muito querida perguntou-me se eu acreditava em Deus. “Depende”, respondi a ela. Ela me propôs um desafio: escrever algo sobre Deus. Expliquei a ela que eu já fiz isso.
Eu já escrevi sobre o amor, o ódio, a felicidade, a tristeza, a solidão, o convívio... Deus é tudo isso. Deus é a verdade, o fato, o mito. Quem pode separar Deus de todas essas coisas? Quem é capaz de apontar os caminhos por onde Deus trafega e por onde Ele jamais passará? Deus está em tudo... Deus é tudo.
Deus está na Bíblia, no Corão, na Gita, na Torah, em todas as Escrituras Sagradas, em tudo que nos inspira, assim como também está no Kama Sutra, em contos eróticos, em histórias em quadrinhos, na poesia, nas canções populares, em textos acadêmicos, em cardápios de restaurante, nas buscas do Google...
Gosto de me sentir assim, cercado por Deus onde quer que eu olhe. Deus está onde procuramos. Se a sabedoria aproxima o homem de Deus, como já dizia o filósofo Sócrates, não acho certo impormos limites à nossa sapiência. Sejamos, todavia, atentos para alcançarmos nossa maturidade intelectual e compreendermos quais informações nos são úteis, o que realmente nos acrescenta. Àqueles que têm Deus como objetivo, saberá reconhecer a presença Deste até nas páginas de São Cipriano ou nos gibis da Turma da Mônica. Aos que apenas enxergam o mal, praticam o conhecimento apenas para seu próprio benefício e condenam, julgam e ignoram tudo o mais, a informação apenas potencializa a dose do veneno. 
Quem pode definir o tempo e o espaço que pertence a Deus? Devemos agendar hora e lugar para encontrá-Lo? Antes de criticarmos o que está diante de nós, melhor seria analisar se Deus está em nossos olhos, pois Deus está na águia assim como está no coelho e não é a cadeia alimentar quem decide se é o predador ou a presa a criatura mais digna da presença Dele.
Não me atrevo a traçar um perfil de Deus, isso é inconcebível ao nosso limitado raciocínio. Melhor seria fazermos de nossa vida um livro do qual não tenhamos vergonha de expor nossas páginas e buscarmos Deus como nosso leitor.
Se eu acredito em Deus? Depende... No meu ou no seu?

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Gusmão e Josilene

Gusmão quase deixou a marmita cair quando ouviu a declaração de seu colega de trabalho.
_ Que papo de fresco é esse, Everaldino?
_ Só falei que chorei quando vi Titanic, oras!
_ Vai pedir suas contas que pra trabalhar aqui tem que ser macho!
_ Ué! Você acha que eu não sou macho só porque chorei? Você já viu este filme?
_ Vê lá se perco meu tempo com essas porcarias!
Peteco empurrava o carrinho-de-mão e quis saber qual era o assunto:
_ Do que as princesinhas estão falando?
_ Cara, o Everaldino aqui está dizendo que ele chorou vendo o filme Titanic!
_ Aquele do James Cameron?! Nossa! Eu assisti com minha patroa! Só de lembrar da música da Celine Dion já sinto as lágrimas chegando!
_ Até você, Peteco?! O mundo está acabando mesmo! Ô, Josiomar! Dá um tempo aí no concreto e chega mais! Você chorou com o filme Titanic?
_ Pô, não chorei não. Mas vocês já assistiram A Vida é Bela? Acho que fiquei desidratado de tanto que chorei...
_ Meu Deus! Estou cercado por um bando de efeminados!
O capataz chegou pra botar ordem.
_ Vamos parar com a moleza? Dá pras moçoilas pararem de fofoca e voltarem ao serviço?
_ Pode responder uma perguntinha antes, chefe?
_ Fala logo, Gusmão!
_ O senhor costuma chorar quando vê filme?
_ Mas de jeito nenhum! Está pensando que eu sou o quê?
_ Esse é meu patrão!
É a vez de Josiomar perguntar.
_ Mas o senhor assistiu A Vida é Bela?
_ Nossa! Sim, sim... (responde tirando um lenço do bolso e secando os olhos) É muito emocionante!
_ Mas o senhor disse que não chora com filmes – esbravejou Gusmão, inconformado.
_ Mas A Vida é Bela não é um filme... É uma obra de arte! (soluçando) Com licença... Preciso resolver umas coisas agora...
Gusmão transtornado:
_ A que ponto chegamos? Não se fazem mais homens como antigamente?
Eis que Mandela, um homenzarrão patola, que carregava um saco de cimento no ombro com toda naturalidade e desenvoltura de um empresário carregando um terno, surge em meio às lamentações de Gusmão.
_ Mandela! Você é minha última esperança! Diz pra mim: Você chora quando vê filme?
_ Pô, Gusmão, a televisão lá de casa está no conserto. Não costumo ver filme.
_ Estão vendo? Eu sabia que Mandela não me decepcionaria!
_ Mas, Mandela, – Peteco interpola – você não se emociona com história nenhuma?
_ Ah, sim! Eu até chorei no final de Marley & Eu.
_ O quê?! Mandela... Você acabou de dizer que não costuma ver filme!
_ Filme mesmo não, mas eu li o livro, oras!
Agora sim a marmita de Gusmão caiu de vez.
_ Olha o que vocês fizeram! Deixei meu almoço cair no chão por causa de vocês, seus borra-botas! Se bem que depois dessas declarações eu até perdi a fome!
Everaldino sugere:
_ Gusmão, por que você não passa na barraquinha do Antunes aqui na frente da obra e compra um DVD pirata?
_ Mas eu já vivo fazendo isso!
_ Não estou falando dos pornôs! Pega um drama dessa vez!

...

Josilene volta de seu trabalho como diarista e pega todo dia o trem lotado para chegar em sua humilde casa localizada na encosta de uma favela. Antes, ela passa na creche para pegar os dois filhos, Gleuberson de sete e Tainara de cinco anos. O esforço para subir a íngreme ladeira é ainda mais penoso agora que ela está no quarto mês de gestação. Josilene estranhou que seu marido já estivesse deitado, pois tinha jogo do flamengo depois da novela. Ainda mais estranho era aquele DVD no braço do sofá. O filme se chamava Um Amor Para Recordar e na capa havia a imagem de um casal abraçado... De roupa!
Depois de jantar e colocar os filhos pra dormir, Josilene foi se deitar ao lado do marido. Ela beija suas costas e o acaricia até alcançar sua cueca. Ele retira sua mão carinhosamente.
_ Gusmão?! O que está havendo com você hoje?
Gusmão não se vira. O rosto mirando a parede no escuro do quarto garante o sigilo de suas lágrimas.
_ Estou bem, mulher. Apenas me abrace, por favor.
Josilene o abraçou, mas não conseguiu adormecer. O que estava acontecendo? Ele não a deseja mais? Estaria a traindo com outra? Teria alguma coisa a ver com o que o pastor de sua igreja pregou domingo passado? Algo a ver com o fim do mundo, sei lá.

...

De manhã, Gusmão tomou café junto com toda família. Despediu-se beijando esposa e filhos dizendo que os amava. Precisou se conter para não chorar novamente. Josilene acompanhava os passos do esposo descendo a ladeira. Gusmão olha para trás e acena para a esposa. Josilene devolve o gesto, meio atônita. Ela olha para o céu e nota o tempo nublado e enormes nuvens negras se formando ao longe.
_ Mamãe, o papai está virando mariquinha?
_ Deixa de bobagem, menino! Termina de tomar seu café!
Josilene retruca sem tirar um só momento os olhos do céu.