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terça-feira, 30 de março de 2010

Dueto

Ele desligou o telefone com aquela sensação anestésica de quem perde o chão. Do outro lado da linha, ela se despediu depois de uma conversa que em nada lembrava as doces palavras que viviam trocando. Claro que divergências aconteciam, mas desta vez foi diferente. Era o prenúncio do desencanto que por tanto tempo ele protelou. Teria, enfim, completado sua coleção de dúvidas? Eis uma dúvida a mais em seu repertório.
Ainda desprovido de sua clareza emocional, ele permanece em pé olhando o aparelho e recordando as palavras de sua amada e começou a entender que as coisas estavam diferentes. Não percebia nada de bom ou de ruim, mas algo estava estranhamente diferente.
Vacilante, sua coordenação motora o levou até uma poltrona onde sentou e divagou em seus pensamentos. Num repente, sentiu um lampejo de paz, algo apenas justificado pela presença de um anjo que materializou-se diante dele. Aqui cabem algumas considerações sobre os anjos:
1- Mesmo que não haja um contato anterior, a presença de um anjo nunca surpreende. Se manifestam sempre com sutileza e se vão como o despertar de um sonho;
2- Só há duas ocasiões em que o anjo o toca, quando nascemos e quando morremos. Em qualquer outra ocasião os anjos apontam ou assopram;
3- Anjos não se comunicam através de palavras, mas de sensações. Palavras são códigos sonoros que podem ser mal interpretados, sujeitos a ambiguidades. Sensações dispensam palavras e os anjos as traduzem de forma inequívoca,
4- A palavra “não” é inexistente no vocabulário celestial. Quando desejamos não estar doente, por exemplo, projetamos nosso pensamento em algo que não queremos. Melhor desejar estar saudável. Os anjos interpretam nossos pensamentos. É como alguém ordenar “não pense em sua mãe”, automaticamente você pensará nela.

O anjo apontou para o peito do rapaz e disse através de um olhar:
_ Você permitiu que seu coração falasse por você e ele pôs-se a cantar.
“E cantou tão alto que eu já não conseguia ouvir minha razão”, respondeu o rapaz. O anjo concordou com um sorriso amável. Algum tempo depois, o rapaz emendou com certo humor:
_ Bom, meu coração não está cantando sozinho! Há outro coração cantando em parceria com ele! Acabei de conversar com minha amada por telefone. Estamos passando por um momento de desarmonia, mas a gente se acerta! É normal que nossos corações desafinem em algumas notas. Um dueto requer muito ensaio para dar certo.
O anjo nada disse, mas nem era preciso. Com um sopro e um sorriso, o anjo se desfaz no ar, como uma neblina que nunca esteve ali.
O rapaz finalmente entende que ele permitiu que seu coração cantasse, mas não havia um dueto... Era apenas o eco de sua própria voz.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Monólogo Ménage à Trois

Acho que todo homem tem o desejo de viver uma relação a três. Eu sonho em fugir disso. De um lado, a solidão. Do outro, a saudade. Na última ponta estou eu, completando esse triângulo amoroso. Lembro que conheci a solidão ainda bem jovem. Eu estava em uma festa de aniversário e, enquanto as outras crianças se divertiam, eu me isolava em um canto qualquer sem o menor interesse em interagir com os demais. “A pior solidão é aquela que nos humilha quando estamos acompanhados”, pude ouvi-la sussurrando em meu ouvido. Imediatamente, percebi que seríamos bons amigos.
Em algumas ocasiões, a solidão se distraía e, em uma dessas oportunidades, acabei flertando com a paixão e fui cúmplice do amor, mas tornou-se difícil conciliá-los à minha rotina, daí acabei me afastando... Foi aí que conheci a saudade.
Já em seu primeiro contato minha solidão e minha saudade se identificaram e em pouco tempo se tornaram amigas íntimas. Ora trocavam confidências, elogios, carinhos, sorrisos... Nem sei de quem partiu a iniciativa do primeiro beijo, mas muitos vieram depois deste e cada vez mais ardentes. Hoje, serpenteiam seus corpos como amantes vorazes e insaciáveis. Apesar de estranhamente excitado com essa relação, nunca fui convidado para participar daquele jogo tórrido, limitando-me ao papel de voyer. Dividíamos a mesma cama, mas nunca os mesmos prazeres. Não raras vezes acordei ao lado das duas embaladas em seus movimentos eróticos ruidosos. Às vezes me levanto e as contemplo como quem assiste a um filme de Stanley Kubrick ou David Lynch. Outras vezes as ignoro e finjo dormir um sono impossível.
Tomado por um sentimento que desconheço, me afasto uma vez mais. Procuro alívio em um livro, um gole de vinho ou qualquer outra coisa que cale os gemidos daquele romance. Em certo momento, projeto meus pensamentos para o futuro. Um futuro diferente, onde minha solidão e minha saudade não passam de reles lembranças de um passado cada vez mais esquecido. Me imagino realizado e feliz ao lado daquela que será minha companheira e até consigo visualizá-la, senti-la, desejá-la... Respiro fundo e decido que esta é minha meta, meu destino. Já é hora de traçar um novo plano em minha vida.
De volta ao quarto (e à realidade), me deparo com as duas amantes exaustas adormecidas e confortavelmente entrelaçadas. Minhas convicções fraquejam. Não sei ao certo se abandoná-las compromete um voto de fidelidade jamais assumido entre mim e minhas hóspedes. Deito silenciosamente para não acordá-las. Ensaio um sorriso que não vem e reflito se a felicidade que almejo é de fato um plano que quero pôr em prática ou são apenas simulacros momentâneas de uma alegria platônica. À vezes me pergunto se minha esperança não passa de mero subterfúgio... Algum tipo romântico e patético de masturbação.

terça-feira, 23 de março de 2010

Felicidade Segundo o Profeta

Que a maior faculdade de Filosofia que existe é a mesa de um botequim não é nenhuma novidade (não sei ao certo se o MEC já reconheceu isso, mas é só uma questão de tempo), mas tenho notado um olhar messiânico por parte de seus freqüentadores. Clientes com algum tipo de angústia chegam solitários ao bar em busca de alguma resposta para suas aflições que bem podem estar no fundo do copo ou nas conversas periféricas. Na maioria dos casos a resposta (quando vem) é esquecida no dia seguinte por conta da maldita ressaca.
Em certa ocasião, uma mulher de meia-idade entrou em um famoso bar freqüentado por célebres pensadores e escolheu uma mesa próxima a um grupo exaltado que bebiam e bradavam suas considerações sobre a vida. A mulher pediu um chopp e ficou atenta ao papo acalorado da mesa vizinha.
_ O Ronaldo engordou, mas e daí? O cara é o fenômeno!
_ E esses caras que mergulham com tubarões? São loucos!
_ Eu também tenho uma cicatriz no queixo!
_ Político é tudo ladrão e safado!
A mulher pede mais um chopp. Ela se sente solitária, desnorteada, sem respostas. Ela sabe que cedo ou tarde chegará alguém que dirá as palavras certas. Que resolverá seu conflito existencial.
Algum tempo depois, chega um homem grisalho de gravata frouxa. Ele se junta aos colegas pensadores e pede um conhaque pra começar. Ele é daqueles que sabem beber, não perde a classe, sabe a hora certa de dar sua opinião e todos se calam quando ele fala. É ele. Só pode ser ele o messias desta noite!
Algumas rodadas de chopp e a mulher, meio trôpega, caminha até a mesa e indaga:
_ Você parece muito seguro de tudo que diz. Quero saber se você tem mesmo resposta pra tudo. Diz pra mim... O que é a felicidade?
Fez-se uma pausa de silêncio. Todos olharam para o senhor grisalho que, sem olhar para a mulher, bebe todo conteúdo de seu copo de um só gole, repousa o copo vazio na mesa, respira fundo e responde:
_ Felicidade é beber um copo de água geladinha depois de comer um naco de goiabada.
Todos o olharam maravilhados. Brindaram sua sapiência e voltaram às suas especulações sobre o universo.
A mulher voltou para seu lugar, ainda atordoada com a resposta. Ela chama o garçom e, com um sorriso de canto de boca, faz seu pedido.
_ Vou direto para à sobremesa! Eu quero um prato de Romeu e Julieta, mas sem queijo! E uma água mineral bem gelada!
O garçom quer saber:
_ A água mineral é com gás ou sem gás?
A mulher olha para o garçom nitidamente espantada. Ela baixa o rosto e, com os olhos rasos d’água, decide:
_ Suspende a sobremesa... Me traga outro chopp.
Mais um falso profeta. É claro que a felicidade não poderia ser tão simples assim.

terça-feira, 16 de março de 2010

Beleza Visceral

O mundo vem se tornando cada vez mais intolerante com quem não se enquadra aos patrões de beleza estabelecidos pela mídia. Sendo esta imposição cruel e sem limites, pego-me pensando qual será a próxima imagem cobiçada que devemos seguir para ser aceito neste universo mutável. A estética, mais que um produto é um império que admite meios cada vez mais severos para tornar-se socialmente aceitável. Um retoque no nariz, uma empinada na bunda, uma turbinada nos seios... Nada disso basta se não tivermos uma meta, uma razão para nos entregarmos aos milagres de um bisturi, dietas e exercícios diários.
Claro que tudo isso pode ser muito saudável, mas qual será o próximo objetivo? Os padrões de beleza mudam constantemente e tudo que almejamos é o inalcançável. O que desejamos ser jamais estará diante de nossos espelhos. O que desejamos ser está exposto em outdoors, comerciais de TV, capas de revistas... O objetivo maior da indústria da moda é nos convencer que não somos felizes com o que somos ou o que temos. Consuma cada vez mais. Transforme-se cada vez mais. Pense cada vez menos.
Não existe espaço para sentimentos, o que importa é a aparência. Tabelas, cálculos matemáticos, índices e escalas guiarão seus passos como um oráculo. O resultado de sua circunferência corporal determinará seu lugar neste mundo (não há lugar para quem aja diferente). Ninguém deseja saber como você está, mas quantos gramas perdeu nos últimos dias, quantos minutos você faz na esteira, qual tipo de silicone você recomenda.
Quando a exposição “Corpo Humano Real e Fascinante” esteve em minha cidade, levei minha sobrinha que ficou encantada com todos aqueles cadáveres fatiados. Será que é este o limite pela busca incansável pela perfeição? Zumbis que circulam pelas ruas exibindo seus corpos anorexos e bulímicos conservados através de um processo de plastificação? Alguém precisa explicar a essas pessoas que “Beleza Visceral” não deve ser levada ao pé da letra, ou, em breve, encontraremos clínicas estéticas especializadas em corrigir as imperfeições de nossas vísceras. Imagine a cena: “Oi, gata! Quer ver como meu pâncreas é sarado? Já viu um esôfago mais lindo que o meu?” Pode até parecer engraçado, mas isso é real... E fascinante(?).

segunda-feira, 8 de março de 2010

Famintos

Nunca tive muito talento para cuidar de mim mesmo e meus hábitos alimentares então nunca foram muito saudáveis. Quando trabalhamos, estudamos e moramos sozinhos, a gente acaba se virando com lanches rápidos, práticos e de origem duvidosa. Pouco antes do horário do primeiro tempo de aula, costumava comer em uma pastelaria próxima à faculdade.
Certa feita, lá estava eu com meu pastel de queijo e um caldo de cana quando fui abordado por uma menina andrajosa que não parecia ter mais de seis anos de idade. Ela perguntou se eu poderia lhe pagar um salgado. Ela escolheu o tão conhecido “joelho” de presunto e queijo. Ela recebeu aquele alimento como uma dádiva vinda dos céus, o olhar vívido e um sorriso festivo.
“Como é que se diz?”, perguntou uma senhora encostada no balcão, à minha direita. A menina nada disse. Pegou o joelho das mãos da balconista e saiu em direção à rua. “Falta de educação, sabe nem pedir obrigada!”, disse a mesma mulher, agora com a boca cheia de quibe. “É por isso que eu não pago quando me pedem! É mau costume! Aposto que nem está com fome!”, emendou o homem à minha esquerda com o bigode sujo de risole, segurando uma lata de refrigerante, nitidamente incomodado, não sei ao certo se por eu ter pago o joelho à menina ou por não ter respondido à mulher. O fato é que eu precisaria ter meu espírito completamente surdo para ignorar tamanha gratidão que vibrava daquele pequeno corpo. Evito pensar muito nessas horas, pois sempre encontramos boas razões para negarmos uma ajuda, mesmo que essa razão venha de pessoas sentadas ao seu lado ou de nosso próprio medo de perder nossas migalhas para os pássaros. Por que devemos esperar uma recompensa de alguém que nos honra com a chance de podermos ajudá-la? Talvez seja eu quem devesse agradecer.
Saindo da pastelaria, vi a menina esperando o semáforo fechar para atravessar a rua. Do outro lado, uma menina igualmente mal vestida e visivelmente mais jovem a esperava com os braços apontados para o céu, como quem comemora a grande vitória de seu time do coração. A outra exibia sua conquista como um troféu. Um troféu que foi imediatamente repartido entre as duas com tamanha euforia.
Tal cena fez meu aparelho digestivo interromper seu trabalho e refletir sobre os vários tipos de fome que nos assola. Senti-me um miserável por ter tido a chance de ajudar e ter oferecido tão pouco. Aquelas crianças não conhecem outro sabor senão o da necessidade e, mesmo assim, comemoram seu jantar com a alegria que muitas vezes não sabemos apreciar.
Elas seguem seu caminho incerto de mãos dadas. Seus espíritos estão alimentados e satisfeitos. Decido preencher meu vazio com meus estudos e sigo para meu compromisso, mas não sem antes olhar apiedado os pobres famintos que conferem o troco ainda dentro da pastelaria.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Verdades (Vide Bula)

Sei que algo acontece. Algo sempre está acontecendo.
Nem tudo que escrevo sou eu e nem por isso menos verdadeiro. Certas verdades deveriam ser sinalizadas com uma tarja preta. Avisos de advertência quanto aos diversos efeitos colaterais (asfixia, taquicardia, oscilação da pressão arterial...). A verdade é libertadora, mas toda liberdade tem suas contra-indicações.
Existem os métodos alternativos. Alguns praticam a manipulação da verdade, ofertando-a em doses homeopáticas. A mentira é um alucinógeno, facilmente encontrado em qualquer beco, qualquer esquina. Não há prescrição, apesar do grande mal que possa nos fazer, por isso é tremendamente popular e viciante. Quem mente vê-se obrigado a mentir sempre para sustentar a mentira anterior. Mentir dispensa receituário, não possui qualquer controle, circula livremente. Por fim, mentiras não substituem a verdade, mas costumam ser muito bem-vindas em muitos casos, chegando, inclusive, a ser utilizada como primeira opção de tratamento.
A omissão é um placebo. Na prática, não produz qualquer efeito, mas pode causar sintomas momentâneos de bem-estar (ou não) se apenas acreditarmos e calarmos.
O que é a verdade? Quantas são as verdades? O que os fragmentos ao redor têm para nos revelar? Algo sempre acontece e nos cabe escolher a versão que melhor nos adaptamos. Seja como for, a verdade prevalece sempre. Somente a verdade pode curar.
Nem tudo que escrevo sou eu, mas, certamente, tem eu.